O PLANEJAMENTO FISCAL, A SAÚDE E AS FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: a ADI 6357

O PLANEJAMENTO FISCAL, A SAÚDE E AS FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
análise da medida cautelar na ADI 6357/DF



Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal



A contraposição entre dinheiro e vida é uma angústia de teor bíblico (“ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à riqueza”; Mt 6, 24; Lc 16, 13). Ter que fazer opções e acertar a justa medida entre estar no mundo e atender princípios essenciais à própria vida costuma ser motivo de grandes debates. De certo, não se pode progredir em meio a dubiedades.

O tema na atualidade vem sob a forma do debate entre saúde e economia. Do ponto de vista dos direitos fundamentais, o objetivo é trazer a certeza sobre os embates. Portanto, a defesa do que está plasmado na Constituição precisa seguir vias de solução que não perpetuem conflitos.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, em apreciação monocrática de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.357 feita pelo Ministro Alexandre de Moraes afastou a necessidade de o Poder Executivo demonstrar a adequação e  a compensação orçamentária na criação ou expansão de ações para enfrentar o estado de calamidade pública decorrente da COVID-19. Então, é inafastável verificar se a decisão vigente atende os pontos necessários para balizar uma interpretação dos direitos constitucionais por aquela Corte.

Em sua fundamentação, o Ministro sustenta que “a gravidade da emergência causada pela pandemia do COVID-19 (Coronavírus) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública”. Para isso, lastreia-se na importância do direito à saúde e no amplo acesso às ações e serviços relativos ao mesmo, os quais estariam entre as “principais finalidades do Estado” de bem-estar social. Invoca o Preâmbulo constitucional.

Nesse momento, a decisão apenas reúne a obviedade de argumentos próprios ao bom senso ou ao senso comum de determinado entendimento. E enfrentaria a oposição de quem entendesse o contrário e preferisse privilegiar o viés econômico, como tantas manifestações que podem ser encontradas na imprensa e nas redes sociais. Sendo apenas esses os argumentos, a capacidade da decisão de pôr fim a conflitos, de pacificar ou de trazer certeza estaria ancorada tão-somente na autoridade institucionalizada. Uma opção, um arbítrio, apenas.

Porém, anda melhor o decisum ao se referir à pandemia como uma situação superveniente, imprevisível e grave que afeta o planejamento orçamentário. E, como bem jurídico protegido, parece apontar a “garantia de subsistência, empregabilidade e manutenção sustentável das empresas” e, noutro ponto, a “defesa da vida, da saúde e da própria subsistência econômica de grande parcela da sociedade brasileira, tornando, por óbvio, lógica e juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade.” Ao mencionar a normalidade, vem à baila a categoria jusfundamental da previsibilidade, um elemento importante para a avaliação de atos administrativos.

Como componentes essenciais da responsabilidade fiscal, a decisão aponta a transparência e o planejamento. E esses aspectos têm sua força jurídica na medida em que revelam o caráter dialogal que preside a atenção pelo planejamento das diversas funções dos direitos fundamentais numa dada sociedade.

Por fim, a decisão adimple o “pedágio” tradicional da vagueza principiológica ao afirmar que respeita “o princípio da razoabilidade, pois, observadas as necessárias justiça e adequação entre o pedido e o interesse público”. Em síntese, diz que a posição adotada é adequada para atender o interesse considerado maior pelo relator e que - não poderia ser diferente -, ele entende justa, e que, por isso é uma conclusão, obviamente, razoável. Novamente, é um apego à autoridade do cargo mais que ao Direito.

Esses são os elementos trazidos pela decisão. Vejamos sua relação com a Teoria dos Direitos Fundamentais.

Primeiramente, é preciso verificar qual dever do Estado está presente. E, antes que nos percamos em engenhosidades teóricas, o caso concreto é delimitado pela pretensão concreta que se pretende exercer. Assim, a presente hipótese reclama seis questões a serem formuladas para a adequada hermenêutica dos direitos fundamentais:

I) Qual a pretensão? O Executivo pretende afastar a incidência dos limites de gastos públicos planejados e assim as sanções decorrentes do descumprimento da responsabilidade fiscal.

II) De que direito se trata e qual a proteção jurídica ofertada constitucionalmente que estaria a ser violada? Do direito do cidadão ao respeito ao planejamento fiscal.

III) Qual a função do direito afetada pela pretensão? Função eficacial (desenvolvimento do planejamento) e ambiental (interesse de equilíbrio social)

IV) Qual o nível de eficiência desse direito? Máximo, ele deve ser observado até a aplicação dos recursos como previstos, pois há conhecimentos técnicos disponíveis para essa auditagem e condições materiais para a realização do controle (servidores, equipamentos a própria limitação da verba e o reconhecimento da situação pela Administração).

V) Incide vedação à pretensão? Sim.

VI) Há excludente de eficiência no caso concreto? São quatro os elementos que compõem essa excludente e que devem observados; eles trazem o conflito social para a análise como fato, não como direito:
  1. superveniência de fatos impeditivos do planejamento - presente (pandemia)
  2. imprevisibilidade do impedimento - presente (ausência de controle)
  3. gravidade - presente (impacto nos gastos públicos, vidas e empregos)
  4. necessidade de suspender o plano - presente (gastos estavam limitados)
  
A excludente, como tal, interpreta-se restritivamente, o que foi observado pela decisão e pelo pedido inicial, ao considerar liberadas apenas as despesas relativas à calamidade pública tratada nos autos.

Assim, vê-se que a decisão, ainda que de modo não sistemático, apreciou os elementos da exludente de eficiência, abordou a importância do planejamento e a previsibilidade em tese (contidos na função do direito e no nível de eficiência). Sua conclusão está acertada.

Contudo, ao optar pela lógica conflitual, é “santa no atacado e pecadora no varejo”, pois traz diversos elementos que não necessariamente conduzem a conclusões, como se fossem direitos debatidos no caso (subsistência, pleno emprego, liberdade empresarial, vida, saúde, serviços públicos). E é esse elemento que pode dar espaço a análises menos jurídicas e mais subjetivas no debate colegiado das Cortes, de modo a favorecer o discurso em detrimento da segurança das relações interpessoais.

Uma vez que o objeto do plano é atingido - e há uma imposição constitucional de objetivos a serem alcançados, como a saúde e a dignidade humana - é preciso ver se a responsabilidade ainda vigora. Esses elementos são fatos a serem considerados e, numa visão mais abrangente, estão presentes nas funções dos direitos fundamentais. Mas não conduzem a debates e inícios de teias narrativas acerca de raciocínios jurídicos mais ou menos agradáveis ao intérprete.

Não se deve confundir pretensões, que são dados psicológicos da realidade, com direito. Este decorre de um processo de análise argumentativa cuja forma mais simples é descrita como: “se A, então, B”.

Tornar esses aspectos evidentes é muito importante para o amadurecimento dos direitos fundamentais de modo democrático.

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