O último supremo: defender o Judiciário, rever o modelo


O último supremo:

defender o Judiciário, rever o modelo


Fonte: SCO/STF



Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional
da UFRN
Procurador Federal



"Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros,
escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade,
de notável saber jurídico e reputação ilibada."

(Constituição da República Federativa do Brasil)


O estamento nobiliárquico admitido na linguagem democrática comporta quatro níveis ambicionados por muitos: imortal, supremo, vitalício e estável. A imortalidade é reservada aos cultores do beletrismo e concedida conforme as regras próprias de cada congregação cultural. A estabilidade encerra em si modelo de proteção republicano e é condecorado com ela aqueles que preenchem os requisitos legais, fixados sem a interferência da autoridade maior.

Já a supremacia é tratada na Constituição Federal em relação à chefia das Forças Armadas e autoproclamada pelos integrantes do Supremo Tribunal Federal (cf. STF, 2ª Turma, HC 137728, julg. em 2 maio, 2017); os “supremos”. Para além desses e constituindo o gênero do qual se destaca a supremacia está a vitaliciedade. A supremacia seria uma vitaliciedade diferenciada ou então, pode-se também entender que a vitaliciedade é uma supremacia minorada. Há diferenças.

Enquanto que o detentor da vitaliciedade - reservada pela Constituição aos membros da magistratura, do Ministério Público e de Cortes de Contas) possa almejar a supremacia, essa é restrita ou ao processo eleitoral ou à investidura em Tribunal Superior, para o que não há restrição a apenas poderem adquiri-la membros desta ou daquela carreira regulamentada. Já o “agente supremo” vê-se em situação diferenciada e, ainda que haura essência na vitaliciedade (impropriamente designada, já que há limite etário para que ocorra a vacância pela aposentadoria), não é espécie desta. Então, ela representa um plus em relação à vitaliciedade, já que possui hipótese de vacância que se mostra politicamente mais custosa de ocorrer, como demonstra a história nacional. Ademais, a supremacia está mais próxima da concessão ao príncipe regente Pedro I pelos democratas de Gonçalves Ledo do título de “Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil”, há praticamente 200 anos, em maio de 1822. Posteriormente, a Constituição de 1824 intitulá-lo-ia em seu prefácio e artigo 4º e 100 (dentre outras menções) como “Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil”.

Aliás, essa relação com a perenidade ou imortalidade surge explícita no artigo 116, o qual diz que ele “imperará sempre”. A expressão “chefe supremo” exsurge aí, a ele atribuída e em conjunção com o extinto Poder Moderador (artigo 96) para assegurar a harmonia entre os poderes. Dada a relação histórica entre o Judiciário e a Monarquia, que conduziram os revolucionários franceses a desejá-lo apenas como “boca da lei” (Montesquieu) ou então a falar contra os abusos frequentes e temíveis (Sieyés), é natural que uma monarquia constitucional transfira seus valores ao nascente Supremo Tribunal de Justiça, cujos membros então eram “conselheiros”. Isso é um traço, inclusive, do período colonizador ibérico. A supremacia, portanto, está presente desde o início dos textos constitucionais brasileiros.

Isso não impacta na compreensão de que a esfera de atuação judicante é fundamental na existência do Estado de Direito.
Um Judiciário independente é um espaço de pluralidade e liberdade.
A Democracia não é um dado pronto, é um processo. E, por isso, exige a atenção a processos organizados de decisão que permitam a livre participação dos cidadãos. Erodir a confiança na instituição ou ter decisões isoladas - ainda que politicamente graves ou inoportunas - como motivo de desobediência é a consagração da impunidade. E esta é a derrocada do papel do Estado.

Agora, apenas para registro e sem se preocupar com a utilidade da palavra para designar formas permanentes de regime jurídico, seja ressaltado que "vitaliciedade” pode ser usada não apenas para cargos públicos. Ela também indica regramentos de prestações pecuniárias pela Constituição e pela legislação; notadamente, pensões.

É preciso reafirmar, ao contrário do que se faz coloquialmente, que não é o agente público que é estável ou vitalício, por exemplo. Numa República onde vige o princípio da impessoalidade na Administração Pública, prerrogativas e garantias dizem respeito ao cargo, não ao seu ocupante. Os deveres funcionais, as obrigações públicas, os direitos são atribuídos para proteger a função desempenhada em prol da sociedade, não para privilegiar o seu ocupante. Portanto, o cargo é que, diante dos elementos circunstanciais de seu preenchimento - concurso, posse e, ou, decurso do tempo - tem seu regramento jurídico adicionado para evitar que haja vacância ou substituição ilegítima de seu ocupante.

Para além de questões temporais e formais, a característica essencial da vitaliciedade está na forma de perda do cargo: sentença judicial transitada em julgado; não se lhe aplicam desempenho insuficiente ou processo administrativo. Para a supremacia, isso é ainda mais restrito: decisão do Senado Federal em caso de crime de responsabilidade.

A primeira oração do artigo 101 da vigente Constituição Federal é lacônica: “o Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros”. Cada um é nomeado (dizer o nome escolhido) pelo Presidente e deve ser aprovado pela maioria absoluta do Senado Federal. No momento, há um cargo vago, à espera de que o nomeado seja sabatinado e aprovado pela casa parlamentar.

O Supremo Tribunal Federal, conforme apontou Pinto Ferreira, situa-se num misto de corte recursal, tribunal de federação e corte constitucional. Seu volume maior de atividades e decisões de impacto político situam-se no plano recursal. Ademais, é conhecido o movimento desenvolvido por seus integrantes da época no sentido de preservar o modelo, em vez de avançar para a criação de uma Corte Constitucional, como aventado e debatido em diversas etapas da Assembleia Nacional Constituinte.

Debates como a restrição de vagas a carreiras jurídicas, estabelecimento de mandatos e criação de vagas para magistrados de carreira precisam ser retomados. Saindo do período imperial, o modelo republicano inaugurara sua feição política, a qual evolui gradualmente. Num primeiro momento, marcadamente difuso, por inspiração da judicial review. Já com a emenda constitucional nº 16, de 1965, inaugura-se o modelo de representação de inconstitucionalidade pelo Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, o que consolida a tendência inaugurada na Constituição de 1946 (que deu ao Senado a possibilidade de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo em controle difuso; de um controle judicial, concreto e difuso, transita-se ali a um político, abstrato e concentrado). E, com a Emenda Regimental nº 12/2003 fica consagrado um movimento de maior caráter concentrado, mas ainda mantidas as bases históricas da Corte. Essa Emenda estabeleceu a possibilidade de sobrestamento de processos nos Juizados Especiais Federais (criados pela Lei  10.259/2001), à míngua de poderes conferidos por lei. Apenas com a lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006, é que adveio a possibilidade de sobrestar processos repetitivos cujos representativos aguardavam julgamento de recurso extraordinário. E a Emenda Constituição nº 45, de 30 de dezembro de 2004, é que estabeleceu o mecanismo da repercussão geral, para limitar o volume processual (preocupação desde o período constituinte).

Em junho de 2002, por sua vez, consagra-se a modulação de efeitos da decisão com o julgamento do RE 197.917 (caso da proporcionalidade do número de vereadores). A consolidação dessa fase conclui-se apenas em março de 2014 com a Reclamação 4.335 e o reconhecimento de efeito ultrapartes em decisões de casos concretos e análise da necessidade de comunicação ao Senado para isso.

Os antecedentes desse movimento podem ser observados em três momentos. Primeiramente, na concessão de liminar da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, em fevereiro de 1998, na sequência da criação desse instrumento pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Essa decisão impactou as concessões de liminares contra o Poder Público em decisão transmitida a todas as instâncias judiciais brasileiras por comunicação física. Na sequência, há, em fevereiro de 1997, o julgamento emblemático do “reajuste de 28.86%” dos servidores civis em razão de análise da constitucionalidade da Lei 8.627/93. Em um julgamento, o do RMS 22.307, milhares de processos receberam o mesmo destino. Por fim, na seara penal, a discussão sobre a “execução antecipada da pena” mobilizou atenções por ocasião do HC 72.366 (set/1995) acerca dos contornos da presunção de inocência.

Dentro de uma evolução histórica do Judiciário brasileiro calcado mais na multiplicação de órgãos julgadores do que com a racionalização do iter processual, essa alteração corre o risco de se tornar disforme. A Justiça Federal ganhou tribunais regionais, a Justiça do Trabalho ganhou regiões por Estado - por vezes mais de uma, competências do STF foram transferidas ao STJ e assim por diante em uma perspectiva que remonta ao início da República. Sempre com a manutenção do mesmo modelo de atuação judicial, com focos territoriais e com a concentração do método de solução de conflitos na estrutura estritamente judicial. Contudo, neste momento, há um positivo incremento de transformações advindas do acréscimo de uso dos meios eletrônicos (que muitas vezes apenas virtualizam a sistemática física) e do incentivo a métodos extrajudiciais mais adequados de solução de conflitos.

Recentemente, o Presidente da República apresentou perante o Senado Federal pedido de Impeachment de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Como pressuposto, isso revela a ausência de mecanismos de interação institucional que resolva as disparidades de interesses na condução de políticas públicas. Mas isso implica na urgência de serem tecidas observações sobre o modelo hoje existente.

Esse pedido foi visto como uma afronta à independência judicial em razão de seu ineditismo histórico. Todavia, num ambiente republicano, ainda que seja possível - por questão de sopesamento da oportunidade política - ser contra tal requerimento, é preciso analisar todos os aspectos envolvidos.

Pois, sendo possível a qualquer cidadão apresentar tal pedido, é impossível não se reconhecer ao Chefe do Executivo optar, dentro das alternativas existentes, a oportunidade de utilizar-se de tal instrumento. Até mesmo por sua legitimidade democrática para apresentar tal documento.

Doutro lado, é indispensável que se lembre não caber a um agente público, na República, o atributo da “intocabilidade”. Não há, em absoluto, essa característica. A tal ponto de, quando se trata de cargos eleitos, a existência de mandatos é uma imposição. Para os demais agentes, a possibilidade de troca do ocupante deve ser uma possibilidade real. Já há os supremos e os vitalícios; não há necessidade do intocável.

Portanto, para além de valores morais como humildade, impõe-se a possibilidade de sujeitar ao escrutínio - político, pelo Senado - da adequação do cidadão ao cargo que ocupa. Dessa maneira, ainda que se considere intempestivo, inadequado e desprovido de fundamentação, tem o mérito de mostrar ser possível um caminho de garantia da legitimidade dos ocupantes de importantes cargos.
Por outro lado, considerando as deficiências do modelo de separação das funções adotado no país, vê-se ser importante uma reformulação do modelo da cúpula do Judiciário. O modo atual atende mais a uma posição adversarial com distribuição de competências de autosustentabilidade política de cada poder do que a uma atitude cooperativa

Por isso, é fundamental que se retome o debate das propostas de instituição de um Tribunal Constitucional no Brasil, ainda que sob o modelo de uma seção especial do Supremo Tribunal Federal. Isso impõe alterar o modo de composição da Corte. E o recurso a elementos já presentes em outros países que possuem o modelo de Tribunal Constitucional poderia ser muito valioso.

A probabilidade de dividir os campos de indicação é outro muito promissor: ampliar o número de membros e atribuir mandato (dez anos, sem recondução) aos que exercerão a competência constitucional - a esses seria aplicável a supremacia; e o exercício da competência recursal por magistrados já detentores de vitaliciedade em cargos de provimento permanente.

Na seção de constitucionalidade, os membros poderiam advir de indicações realizadas pelo Congresso Nacional, em sistemática semelhante à já existente para o Tribunal de Contas, de votação realizada pelos demais membros do Supremo Tribunal Federal e dentre nomeações realizadas pelo Presidente da República em listas encaminhadas pelo Parlamento. Ademais, e não menos importante, ao menos metade das vagas deveriam ser reservadas proporcionalmente aos demais membros das carreiras jurídicas de Estado previstas na Constituição como Funções Essenciais à Justiça: ministério público, defensoria pública e advocacia pública.

Essas transformações possibilitariam não apenas um ambiente mais plural nos debates, como maior democracia e maior espaço de debate republicano - pela composição e pela dedicação ao tema especificamente constitucional. Cada elemento pode ser objeto de um debate que os aperfeiçoe. Mas é uma proposta que reclama urgência.

Seria importante uma regra de transição. Dessa maneira, o Ministro que vier a ocupar a vaga existente seria “o último supremo”, o derradeiro membro da Corte a ter a prerrogativa de supremacia por regra. Doravante, haveria a vitaliciedade e a supremacia.

Essas são ideias lançadas no desiderato de estimular o debate do tema. Por isso foi apresentada a diferença entre vitaliciedade e supremacia e considerada a quadra histórica que a transição para um novo modelo encontraria. O modelo atual, herdeiro de uma tradição centralizadora, não apresenta condições de responder às necessidades atuais do país.



Agradeço as reflexões proporcionadas em livre debate com os professores Paulo Lopo Saraiva e Ana Beatriz Presgrave, sem com isso representar o posicionamento dos mesmos acerca do tema.

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