A constitucionalização das emoções, parte 6, tópico I: prelúdio para o direito à Felicidade


Prelúdio à Felicidade

Pierre-Auguste Renoir, La Yole, 1875, The National Gallery, Londres

Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional na UFRN
Procurador Federal


Cada rosto é uma aventura diferente. Deve ser isso que os faz tão iguais. Não seria então uma contradição serem iguais? Bem, são iguais em sua humanidade.

Porém, também são indistintos se considerarmos tristemente que, apesar de tantas pessoas no mundo e de sempre nascerem mais, menos humanidade temos. Esse é um problema que tem por início e fim o mesmo aspecto dramático: a indiferença com o outro.

Indiferença não é igualdade. Aquela é eu não me reconhecer no outro, é não ver que compartilho a segunda com ele. E, por ser assim, temos a mesma "morte severina". Mas, ao olhar todos, vemos que não somos iguais em tudo na vida.

Se isso era para ser bom de alguma forma, a maior parte da humanidade sabe que, em algum momento, aparentemente trocaram o que era para ser igual pelo desigual e vice-versa.

Tantos rostos, tantas histórias. Quando nações se cruzam num local, numa cidade, numa rua, histórias entram em contato. Quem, por algum motivo, deixou o seu lar, o local onde tudo estava preparado desde antes de seu advento para que exercesse seus costumes, seu alfabeto e suas vestimentas, carrega em si um desconforto, uma inquietude e uma aventura. Leva em si a fermentação da busca humana mais profunda: conhecer-se.

Até sete anos de idade, segundo minha experiência, não há povos, nações, línguas ou fronteiras. Todos choram e falam das mesmas necessidades, dos mesmos sonhos e, inclusive, até quase dois anos, têm o mesmo idioma. Todos podem ser astronautas, motoristas, jogadores de futebol, agricultores. Podem tentar voar, ver as menores estrelas e sabem olhar no fundo dos olhos do outro.

E, aos poucos, o convite a sair de si faz com que sejamos instruídos e absorvamos, a partir da linguagem, todo um patrimônio cultural construído há séculos. Repentinamente, somos herdeiros de culturas e tradições que, na verdade, ninguém sabe precisar seu "big bang".

Por isso, não me sinto admirado ou deslumbrado pelo progresso, pelas artes, pelas realizações ou conquistas, sejam militares, científicas, estruturais ou arquitetônicas, deste ou daquele povo, país ou nação, de alguma maneira específica. Eu me sinto deslumbrado pela humanidade, pela incrível capacidade do ser humano onde quer que se encontre e onde quer que se encontrem os homens.

Mas esse contato, tão importante para se construir algo, nunca foi fácil. Por alguns motivos, muitos se sentem mais merecedores do que outros na distribuição de dádivas no mundo; ainda que elas não sejam finitas. Duas pessoas podem ser as únicas moradoras de um distante vale; lá, cada um tem a sua casa. E, no seu próprio quintal, cada um cultiva sua pequena horta; ambas com as mesmas dimensões. Um dia, eles conversam. Um olha para os altos montes que apontam para os céus a partir de sua janela e diz: - Vê?! É tudo meu! Tudo me pertence! E o outro, estranhando a observação inusitada, e como criança, tomado pela necessidade de se inserir no debate, na linguagem para se relacionar, aponta para sua horta e os dois metros que a separam do rio que por ali corre e diz: - Vê?! Daqui para ali é tudo meu!

Qual a diferença? Nenhuma. Nessa situação abstrata, na qual ambos obtêm seu sustento e não há como avançar sobre as posses de modo a inviabilizar a liberdade do outro, não há nada do que se vangloriar.  Quando muito, fatigar-se. Coletores e nômades não se distanciam aí. E, por mais que um deles acumule, não poderá comer mais. Eles pensam diferente, têm liberdade para serem diferentes, construírem coisas diferentes, mas são iguais por isso mesmo.

Parafraseando Russeau, a insegurança nasceu no momento em que alguém foi tolo o suficiente para cercar uma dádiva e dizer que era sua: os mais justos, os mais honestos, os mais hábeis, os mais inteligentes, os mais precavidos, os mais eficientes, os mais humildes, os mais mansos, os mais contemplativos. Ao serem "mais", buscaram haurir forças onde estas não existiam. Procuraram uma legitimação que ninguém deu. São mais, querem ser mais, não são iguais, não querem ser iguais. E não vêem que, em verdade, são iguais, não "mais".

É essa pretensão de possuir os olhares, os abraços, os bens, as decisões, que revela a disseminação de um medo que muitos acham natural. Reunir-se em grupos para se proteger, seja em guildas, votantes, organizações, partidos, oligopólios, sindicatos, torna-se uma manifestação gregária que, dessa forma e com esse intuito, ultrapassa o indispensável para o contato humano.

O relacionamento deixa de ser a busca pelo desconhecido para ser a construção de um muro. E esse "muro" muitas vezes se tornou real: em fronteiras, muralhas, cidades, prisões, hospícios, orfanatos e aeroportos. É o medo, que passa, com outros nomes, a ser tido como necessário.

E qualquer sistema de pensamento que lance âncoras nessa perspectiva está fadado a ser um reprodutor da insegurança, do conflito e do dissenso. A diferença não está no que se faz, no que não se pode ou no que se deve fazer, mas no modo como se entende as pessoas e se olha para elas.

A humanidade ainda não tem quem cuide dela. Continuamos a gerar orfandades. Não é sempre assim e nem essa é a forma indefectível de ser. Muito já foi feito, muito é feito: sempre que a dignidade humana é colocada em primeiro lugar; quando não há cor, língua, classe social ou outros muros a separar.

Quem já experimentou, sabe.

Isso não parte da lei, do juiz ou do governante. É uma questão do direito mais próprio e inerente à existência: o direito de ter acesso a uma cultura. A ser introduzido na rica experiência humana e nela ter condições de desenvolver segundo seu entendimento todo seu potencial corporal, intelectual, sexual, devocional e artístico. A medida disso pode ser chamada de felicidade.

Não se receita, decreta ou decide felicidade para ser adquirida na farmácia, obtida numa repartição ou entregue por um oficial de justiça. Ela é vivida a partir de uma experiência pessoal e, indispensavelmente, comunitária. Noutras palavras, mais comuns ao discurso técnico e de manuais, é preciso mudar a visão de mundo dos profissionais.

Quanto sofrimento, quanta busca.

Chamamos de crueldade os genocídios, o holocausto, os atos terroristas; sabemos o que são. Desumanizam, são dolorosos, matam crianças, matam pais, amigos, famílias inteiras, destroem histórias de amor, colapsam as condições de sustento material das pessoas, geram sofrimento. Chamamos de homicídio atos que tiram a vida em vinganças, perseguições, espionagem, guerras; autorizamos mortes em combate. E tudo isso também causa aquele sofrimento da crueldade. Mata-se para roubar; mata-se para se recuperar o roubado.

Sim, tanto as experiências de felicidade, como as de sofrimento, não foram suficientes para sabermos verdadeiramente o que são. Se soubéssemos, não teríamos sofrimento, mas, no máximo, frustrações – o que seria aceitável no convívio e, sob certo ângulo, necessário ao desenvolvimento pessoal. Portanto, o conjunto universal dos indivíduos ainda não sabe disso. Não basta à riqueza nem à Paz viver em grupos menores. É uma experiência individual e coletiva. É algo individual a ser transmitido e coletivizado; e também é algo do grupo a ser passado a cada integrante.

Quando buscamos respostas para os grandes enigmas do universo, como se faz com a física e a matemática, por exemplo, mais dúvidas são levantadas: matéria negra, forças gravitacionais, tempo, limite e expansão do universo, centro do universo, radiação cósmica. Dúvidas importantes, profundas e perturbadoras.

E aprendemos a olhar para o que está entre os espaços, vemos a gravidade como a força que une tudo, pensamos sobre o vazio. E assim, começamos a procurar essas grandes respostas no que está perto, no pequeno.

Nesse momento, podemos notar que conhecer o diminuto, a origem da vida, como se faz, por exemplo, na botânica, na biologia e na química, também é outra constante humana; tanto quanto o é olhar para a grandiosidade. E, no mundo microscópico, na influência das estações, na conformação genética da criação, o grande e o pequeno se encontram. É “a busca”, a constante viagem humana: a busca de um caminho completo com começo, retorno, fim, impulso, deslocamento e parada.

Contudo, quem viaja experimenta o mundo. Não é o outro que é conhecido, mas o viajante mesmo é que se põe à prova diante do inesperado, do improvável e do desconhecido. Quem se propõe a gerir, esculpir e ajudar relações, precisa aprender com elas. Do que sente falta, o que procura fazer, como recebe as reações, como reage? Esse é um patrimônio que não estava na sua herança cultural recebida. Mas que pode ser transmitido.

Agora, propomos a busca da Felicidade. Como reagimos a essa ideia, o que esperamos dela, o quanto reconheço ou sinto isso, são aspectos que irão determinar profundamente o uso do termo. O cientista precisa estar “aberto”, mas muitas vezes tenta estar mais “preparado” para as descobertas. E isso dificulta ver algo novo ou que não controla.

Somos todos da mesma raça, da mesma espécie, e carregamos conosco as mesmas inquietudes. Elas não podem ter fim, mas sim serem aplacadas. Podemos ver os montes, mas a angústia cessa com o trabalho na horta e o olhar na direção do ruído do rio.

Levemos a nós e a felicidade a um caminho.



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