Cultura e Democracia


A CONSTITUIÇÃO ANTIDEMOCRÁTICA





Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal



"Você me ignorou
Me bloqueou
Me deletou né?
Só faltou me esquecer"


("Showzinho de recaída",
de Felipe KeF, Henrique Batista,
João Pedroni, Kaique Kef e Rafael Libi,
interpretada por Naiara Azevedo)




Enquanto houver um ditador dentro de cada cidadão, haverá ditadura. E se houver apenas um assim, haverá o risco.

A Constituição de 1988 é a mais democrática que tivemos; certo. Mas a democracia ainda é um processo. É preciso dizer que a Constituição que temos é mais anti-64 do que anti-autoritária.

Um dos primeiros a terem a cidadania alemã revogada pelo III Reich e considerado pelo partido nazista como um corruptor da verdadeira arte alemã, Kurt Tucholsky esculpiu a afirmação de que "um país não é apenas o que ele faz - mas também aquilo com o que ele se conforma e tolera" ("aber ein Land ist nicht nur das, was es tut – es ist auch das, was es verträgt, was es duldet"; em carta a Arnold Zweig, em 12.12.1935). E é uma afirmação a ser considerada e aplicada aos tempos que vivemos dada a experiência do seu autor com uma sociedade conturbada, na qual as pessoas se apegavam a fiapos de atenção para se sentirem protegidas de uma perda social, patrimonial, jurídica e moral.

Com não menos autoridade, Hannah Arendt afirma que se, por um lado, o totalitarismo encontra forças na crise por que passa o mundo "chegaremos à conclusão inelutável de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora" (em "as origens do totalitarismo"). Em um ambiente europeu de Estados nações no qual as bases das concepções de poder foram solapadas por massas de refugiados muitas descobertas foram feitas: o "crescimento das minorias", a disputa por proteção estatal, o vislumbre de que as pessoas não era protegidas por direitos, a noção de homem e de povo, e a desconexão entre o discurso jurídico e seu significado social. Daí ela ter ressaltado o ápice a que se chegou: pedir "o direito a ter direitos". Em um contexto como esse, a Constituição é acentuadamente simbólica (Marcelo Neves).

Estudar a cultura jurídico-constitucional de um povo exige, então, que se observe não apenas o que suas palavras afirmam, mas suas entrelinhas. E elas estão desenhadas com o contexto das relações sociais.

Há duas Constituições, a formal e a social. Aquela resulta do que está escrito e das elocubrações e brocados que os juristas deitam sobre ela. Pode ser dividida em formal e material.

Por outro lado, há a Constituição social: as normais sociais que de fato imperam no grupo de modo que não permitem sua ultrapassagem por outros comportamentos sem sérias reprimendas sociais. Ela também se subdivide: há a Constituição para o povo (de "cima para baixo", como comportamentos impostos pelo proceder das instituições) e a Constituição do povo (de "baixo para cima", os processos que regem as relações sociais, independentemente de conhecimento generalizado sobre a Constituição formal).

Ambas têm que ser consideradas pelo jurista. A primeira, como conjunto normativo (quereres) a ser buscado e a segunda como fatos a serem contrasteados com a primeira. Em regra, aquela deverá se impor. Porém, o Estado é continuamente chamado a fazer um mea culpa e verificar se está diante de uma exceção.

Portanto, não adiantam palavras cativantes que adornem o frontispício constitucional se ele é um mausoléu. Isso faz do texto máximo um "sepulcro caiado": "por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade." (Mt 23, 27-28) Não há condenação mais precisa: por fora, há toda a aparência de Justiça, mas em seu interior se esconde a iniquidade.

Muitos profissionais do Direito, sobretudo manualistas, ainda vivem na "alta cultura" jurídica: o Direito produzido para convir ao consumo de uma classe social específica. E o Judiciário é, por exemplo, uma instituição completamente construída em torno desse conceito, da sua forma de acesso até as leis que utiliza.

Muitos escrevem mais sobre como eles acreditam que a Constituição deveria ser do que sobre como ela de fato é. Elevam aos píncaros da glória normativa preceitos que logo e contraditoriamente entenderão inaplicáveis a casos concretos por força de outro dispositivo que eles não mencionaram quando falaram da beleza principiológica. É o dar com uma mão e tirar com outra e ainda assim dizer que é justo. Por isso o socorro providencial da afirmação mítica e equivocada de que "a prática é muito diferente da teoria".

Atualmente, com a inclusão jurídica de largas camadas da população, não há mais como distinguir o direito da "elite" (quem por um motivo ou outro tem acesso à proteção jurídica) do direito da "classe baixa". Como proteger mais um ou outro diante da insuficiência de recursos?

Apenas para tomar um exemplo paralelo, recentemente, um Ministro de Estado fez declarações preconceituosas de teor econômico acerca pessoas de menor poder aquisitivo que desejavam realizar práticas de lazer semelhantes às dos mais abastados. Por outro lado, outro Ministro de Estado disse que "não existe isso" de intervenção militar; o que revela que há um debate público sobre o assunto. Algumas pesquisas chegaram a apontar que 43% dos brasileiros em determinado momento eram a favor de uma intervenção militar e que 65% da população desconhecia o que seria o "AI-5" (em razão disso, clique aqui para ler o texto correspondente caso deseje).

A verdade é que nós "consumimos" decisões judiciais e atos normativos em busca de um sentido social (Frankl): a cada novo grande tema, uma nova grande decisão. E por isso, cabe trazer o que diz Bauman: "hoje a cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em proposições, não em normas." E tal se aplica ao Direito. O Direito cada vez é menos vocacionado a produzir normas, mas a conduzir transformações normativas.

Por isso as decisões não podem ser aleatórias ou destituídas de compromisso com as bases da ordem jurídica. Quando uma Corte decide em debates descontextualizados entre si ou com o uso despreocupado de princípios e tópicos argumentativos, em negativa a uma retórica jurídica responsável, propicia esse consumismo que termina por deixar a sociedade desnorteada.

Não há silêncio aleatório no texto constitucional. Muitos temas carecem de um enfrentamento sério como cidadania, tráfico de influências, poder da Presidência da República, planejamento fiscal, orçamento, reforma eleitoral, eleições indiretas, dentre muitos outros. Às vezes, ainda usamos a semântica anterior a 88; outras vezes, aceitamos interpretações literais que destoam do viés democrático. Oportunamente, esses aspectos podem ser abordados um a um.

Não é à toa que muitos direitos civis são facilmente exigíveis, mas quando se trata de algo que afete um gasto destinado a políticas de igualdade entre grupos sociais não é raro precisar de debate na instância judicial.

Nós não nos livramos do entulho autoritário que acolchoava o solo constitucional, ele agora dorme dentro do Texto Maior em preceitos que foram herdados de épocas nas quais vigorava a hipercentralização do poder estatal. Contudo, muitas vezes não está escrito nas normas, mas presente nas interpretações que empregamos.

O texto constitucional não é tão democrático quanto se pensa. E a sociedade não é tão democrática quanto pensa que é. Por isso, na escolha entre ideais de vida, muitos optam pela reconfortante e cômoda solução de "colar-se" à fama de quem se vende melhor e não precisar justificar seus posicionamentos.

Enfim, o problema é menos o texto e mais o letramento jurídico.

Quantas afirmações antirepublicanas não são ditas abertamente na imprensa sobre negociar cargos em troca de apoio, ou verbas orçamentárias por "apoio parlamentar", mudar as regras eleitorais para assegurar que se possa continuar no mandato, entre outras? Ditas e aceitas no debate público. E isso ocorre porque a sociedade ainda lê autoritariamente o exercício do poder e sacraliza seus detentores.

Que a prática constitucional aprenda a olhar mais para si e ver com o que compactua.

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