NOTAS SOBRE A CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA



NOTAS SOBRE A CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:
o processo sobreprocessual[*]


(PORTINARI, Cândido. Guerra e Paz. Sede das Nações Unidas)



Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal



Saúdo a todos os presentes na pessoa de minha querida amiga e ex-aluna Íris Dias e da inspiradora amiga Flávia Camilla, que se fez ex-aluna e orientanda. A partir delas, transmito meu carinho por todos os presentes, pelas brilhantes exposições já feitas e, certamente, por fazer, bem como, minha gratidão a todos que participam pelas redes sociais neste momento e em escuta futura.

O que direi, tem fundamento, não apenas em normas jurídicas, mas em 23 anos de atuação profissional tanto no consultivo quando no contencioso, tendo sido confrontado com as mais diversas situações por gestores de diversos escalões, movimentos sociais, administrados, servidores, colegas e comunidades. Por vezes, principalmente nos primeiros desses anos contabilizados, houve dificuldades para se conseguir impor uma conduta socialmente mais produtiva, mas isso apenas mostrou que o tema é mais amplo do que mudanças legais ou de mentalidade dos agentes. Passa por uma mudança social. E o advogado público é um dos principais, senão o principal, agente dessa transformação.


Deveria soar estranho ter que falar em consensualidade perante o Poder Público para ressaltar sua importância. Mas em vez de ser uma dimensão da atuação estatal, parece ser um suspiro contramajoritário diante de algo: uma conflituosidade que seria interna à República Federativa, entre o Estado brasileiro e os cidadãos e também entre estes, quando a Administração é chamada a gerenciar os interesses divergentes.
E é sintomático o fato de a atuação da advocacia pública federal, responsável pelo controle de juridicidade da Administração, dividir organizacionalmente a sua atuação nos setores de consultivo e de contencioso.
Dentre os louvores ao sistema multiportas, torna-se evidente a insegurança reinante com relação a esses pressupostos e receios adjacentes, sobretudo de punição disciplinar ou outra forma de responsabilização do agente público. Há uma dependência de uma visão positivista do Direito. E, se historicamente, o texto expresso é um fator de segurança, também é, a contrario senso, um gerador de insegurança. Ele é um estimulador de atos juridicamente heterodoxos, ao mesmo tempo em que um freio a iniciativas.
A mente é diretamente levada a pensar no processo judicial. Mas a existência de um modo de resolver conflitos para além dos dados armazenados no Judiciário formal fica claro no fato de que a Advocacia-Geral da União tem um histórico de busca da consensualidade cronologicamente diverso às alterações legislativas; sendo anterior a estas.
Há um processo maior do que o processo.

Mas por que reduzir a litigiosidade? Essa indagação cabe exatamente porque essa é a justificativa comum para buscar a consensualidade. E é fato de que o excesso processual torna lento o trâmite dos autos, aumenta os custos do Erário e a descrença social na instituição.
Aqui, é preciso deixar claro que há um Judiciário formal (ocupantes dos cargos da magistratura e quadro de cargos de apoio administrativo e judicial) e um Judiciário em sentido amplo (abrangente das Funções Essenciais à Justiça, com advogados públicos, advogados privados, defensores públicos, ministério público e toda a estrutura de pessoal que o entorna). Ainda há outras carreiras jurídicas, mas a Constituição não as colocou como essenciais à Justiça, que é a designação técnica para Poder Judiciário no texto magno. É o caso de delegados, professores universitários e notários.
Da mesma forma, há um sobreprocesso, maior do que o processo, e que se aproxima da ideia de lide como Carnelutti a define em sua Teoria Geral do Direito. O processo é uma continuidade de interações entre pessoas. Essa é a realidade.
Isso começa antes do debate nos autos e continua depois dele. E o nome é democracia: um modelo de convivência marcado pela crescente complexidade ao longo da vida de cada indivíduo, na qual ele entra em contato com um número cada vez maior de pessoas, opiniões e decisões. Portanto, a noção de pluralidade, de diálogo e de direcionamento de condutas sociais está na Base da concepção de processo.
Direito processual não é sinônimo, por si só, de atuação judicial. Há um processo judicial, outro administrativo e outro legislativo (que é a fonte de tudo que de mais profundo pode ser debatido aqui). Mas a mente é corriqueiramente direcionada para o conflito.
Um sintoma disso é colocar o Direito Processual praticamente como um estudo do Poder do Juiz. Quando, em verdade, tudo que se refere a Direito Público, é o estudo da limitação do Poder Estatal. Mas, como Cappelletti disse, houve a necessidade de crescer a abrangência do Judiciário como forma de trazer ao cenário do debate público a atuação estatal mais ampla, que não se restringe apenas a decisões legislativas e práticas executivas. Porém, essa participação e o ativismo que dela decorre não está ainda bem assimilada pelos atores judiciais.
No caso da Administração Pública, a Advocacia Pública é a detentora de sua face jurídica. Então, o seu papel na construção dessa sociedade mais madura é de grande relevância e não pode ser diminuído ou afastado.

Lembremos que a motivação é mais determinante do que o que se faz.
Portanto, temos que ver que reduzir o número de processos pode ter diferentes estratégias e diferentes efeitos. Nem todos condizentes a uma sociedade melhor.
Se consensualidade for reduzir quantidade de registros cronológicos de pedidos levados ao Judiciário, então é muito pouco e não tem a ver com consenso.

Segundo Cândido Dinamarco, a Jurisdição tem três escopos: jurídico, político e social. E é no social que se encontra a pacificação. E, de modo sobremaneira importante, a educação. Há um escopo pedagógico no processo.
Cabe a ele a missão máxima de inserir no diálogo republicano a cidadania; a Justiça, em seu sentido mais elevado. E esse processo se dá em todas as instâncias das funções estatais e antes, durante e depois dos conflitos.
O correto seria esta sequência: Negociação à Conciliação à Mediação à Arbitragem à Jurisdição formal à Acordo e negócios processuais.
Mas apenas são valorizadas as teorias jurídicas que valorizam o conflito e a vitória. A derrota de quem é visto como oponente se torna uma válvula de escape das pressões da vida social. É um fato.
E, antes que se diga sobre a dificuldade em se obter as primeiras etapas listadas acima, por que não nos perguntamos pela impossibilidade de se ir à Justiça? Isso apenas é visto pelo outro lado: pela visão das dificuldades em se construir soluções extrajudiciais; como se fosse mais fácil obter a vitória judicial.
E em alguns casos, parece ser. Quais? Quando diante de si há um ser humano que tem motivos para se mostrar uma rocha intransigente. E se essa pessoa estiver a responder pela Administração, tem-se o contrário do diálogo, a negação da pluralidade e a violação da democracia.
Experiências como a resolução de demandas por meio de comitês técnicos e jurídicos, como o pioneiro CIRADS, na PU/RN/AGU (ver BUCCI, DUARTE, Judicialização da saúde: a visão do Poder Executivo, Saraiva. MENDONÇA, QUEIROZ, Introdução ao Direito Sanitário: saúde e democracia, EDUFRN), a busca do cumprimento do objeto de convênios (em vez da mera devolução financeira), acordos em fornecimento de bens e serviços e a solução de demandas por meio de estratégias jurídicas inclusivas da comunidade beneficiárias de políticas públicas mostram que há muito mais vantagens numa visão mais ampla do processo do que na busca da arena judicial.

O que se vê é a necessidade de uma Análise Jurídica Integral, que mude o olhar sobre a recepção da lide. Desde o atendimento, passando pela análise e chegando a uma atuação centrada na pessoa.
A conflituosidade social ou seu incentivo frustra as promessas de pacificação. Não adianta falar em sistema multiportas se elas estão trancadas à chave.
Os conceitos básicos são a aceitação do outro e da sua perspectiva perante o mundo, que dão suporte a um diálogo como uma ferramenta colaborativa de alteração da realidade.
O objetivo deve ser o de identificar e vincular-se ao fator humano que transborda na lide; o qual é superior aos interesses momentâneos.
Metodologicamente, isso não se consegue sem empatia, atitude colaborativa e problemas jurídicos bem definidos e enfrentados diretamente, sem o subterfúgio de digressões justificadas pelo conflito e valorizadoras deste.
Como valores, isso exige a formação de agentes éticos, sinceros, íntegros e, podemos dizer, amorosos – pessoas capazes de construir relações estáveis e duradouras.
O princípio que deve guiar a análise jurídica integral é o interesse de quem está a sua frente. E, no caso do advogado público, é a defesa da República e a manutenção da democracia por meio de relações seguras e firmes, capazes de aperfeiçoar as relações sociais.

E isso não depende de lei. Para quem depende de palavras, foge-lhe o coração. Pois este não as encontra.



[*] Registro de apresentação oral realizado no Seminário Consensualidade na Administração Pública, promovido pela Escola da Advocacia-Geral da União, em 8 de julho de 2020. Transmitido em https://bit.ly/semcosensualidadenaadmpublica

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