A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E UMA TERCEIRA TRANSIÇÃO: CONVITE ABERTO

 

Auguste Couder, Le serment du jeu de paume, 1848. Musée de la Révolution Française, Vizille.



Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal


"Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

...

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu."

(Chico Buarque, Tom Jobim. Eu te amo)


A Constituição é um documento que vale por vários, pois tem muitos sentidos. Ela tem valor histórico, literário, político e jurídico; é um convite aberto. E poderia listar muitos outros, mas esses são suficientes para a reflexão abaixo. Recentemente, a data magna da República - afinal é seu verdadeiro aniversário, a promulgação constitucional no dia 5 de outubro de 1988,  transcorreu sem maior repercussão pública, apesar das mensagens e atos institucionais; de reduzida repercussão.

A Constituição se confunde com a própria existência do Estado e, se a cidadania fosse uma religião, ela seria seu texto sagrado. É exagero ou ingenuidade difamá-la por ineficiente ou incapaz de impedir a ocorrência de desvarios autoritários. Em momentos de crise, o culpado é sempre o outro. E, quando a pantomima se sobrepõe à arte política fica fácil desviar a atenção para um culpado útil. Sim, é útil extirpar algo escrito por outrem para ter o direito de escrever o próprio texto.

Paulo Bonavides proclamara a Constituição elaborada em 1988 como "um salvo-conduto para o País sair do arbítrio". Um documento tíbio, entre forças e fraquezas, que se apresentou até mesmo como provisória, já que estabelecera prazo para que o povo exercitasse uma decisão política fundamental sobre a forma de Estado. Segundo ele, após lograr a transição de um regime discricionário para um documento inegavelmente democrático, que "soube congregar o povo e ouvir-lhe a palavra", essa Constituinte Congressual agora enfrentaria, dentre outros desafios, o de transitar "do governo de um Poder para o governo dos três Poderes" (em A Carta de 1988 e o começo da segunda transição).

Hoje, passados 32 anos daquele alvissareiro 5 de outubro, temos o distanciamento necessário para refletir sobre isso. Será que conseguimos transitar para esse governo de três poderes? Como ficou a parte do trabalho de elaborar as leis ordinárias e complementares reclamadas pela Constituição? O unitarismo, que de tendência histórica convertera-se em regra, cedeu, finalmente, espaço ao decantado Federalismo?

A Constituição não tem vida própria. É um texto. Muitos dizem ser um pacto político, mas em diversos temas sensíveis, não houve pacto, diálogo real, senão continuidade de sistemas sob novas regras. A sociedade que amanheceu em 6 de outubro era a mesma da véspera. Algumas mudanças, como as referentes ao espectro político-partidário, demoraram para se fazer sentir nos centros de poder; outras, como a questão agrária, permanecem inauditas; enquanto perdões de dívidas foram feitos de imediato.

Mas ela é um registro, um ato no mínimo notarial, no qual se define um compromisso para com o futuro da gestão da República. As regras existem quando sentidas ou praticadas. Por isso, o acordo precede a sua assinatura. O aludido pacto é um acordo ou ditado de regras a serem observadas por si ou outrem. Não é um ato escrito, mas um encontro de vontades.

Chamamos Constituição a esse registro fundamental e também a essa observância de regras. Mas o que se quer ou que se tem a fazer está nas pessoas. Sua grande diferença é que a legitimidade da elaboração confere-lhe o privilégio de seu texto poder ser utilizado argumentativamente em diálogos institucionais sem que se lhe possa opor conhecimento ou negar-lhe validade. Isso faz parte do acordo. Contudo, para haver diálogo, é preciso haver atores, é preciso haver sujeitos constitucionais que reivindiquem sua participação e o que foi decidido. A personagem deve entrar em cena e dizer suas falas. Ainda temos que construir a República!

Em tempos já passados de predomínio da veiculação impressa, o artigo 64 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias chegou mesmo a prever em 1988 que seria promovida a "edição popular do texto integral da Constituição" para que "cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil." Hoje, aproximadamente 75% da população tem acesso à rede mundial de computadores (IBGE). Portanto, mesmo com a facilidade eletrônica, ainda não "chegamos lá": cada cidadão brasileiro.

Mas, como não basta ter acesso, é preciso saber ler e compreender, foi afirmado o direito à educação (artigo 205). E, para assegurar o acesso, foi desdobrada - da Advocacia e do extinto Ministério Público pré-88 - a Defensoria Pública, que prestará assistência jurídica integral aos necessitados, ou seja, integrará a pessoa ao diálogo jurídico; pelo que essa Função Essencial à Justiça é a garantia final da existência constitucional, não outro órgão (artigo 5º, LXXIV, e 134). A Constituição existe e é eficaz quando fundamenta processos comunicacionais para alterações de comportamento (=norma jurídica) ou quando a população a sente e exige; não quando há uma Constituição "para o povo", imposta por instâncias decisórias do Estado.

Portanto, o que se vê é que, ao longo dos anos, houve uma alternância de atores, de setores econômicos e de grupos políticos no exercício do poder. Ao mesmo tempo, houve uma compreensão mais clara dos interesses que estimulam ou desestimulam a edição dos atos normativos, de forma que as leis ainda não editadas passaram a ser objeto de debate franco pelos setores organizados da sociedade de maneira a se esperar menos "paternalismo" estatal. Aproximadamente 100 "nos-termos-da-lei" ainda estão em aberto.

Por outro lado, a crise econômica e, atualmente, a sanitária, levaram à descoberta de voz por parte de Poderes e entes federados. A crise de legitimidade no Legislativo e a carência de estadistas conduziu a uma maior deflagração na disputa pelos vácuos de poder. E os ocupantes dos cargos, para fazerem valer sua autoridade constitucional, buscaram os dispositivos da Constituição para escorar seus atos.

Segundo Friedrich Müller, a grande virtude da Constituição de 1988 é ter conseguido ser usada como argumento. Sua existência é reconhecida pelos poderes públicos.

A hipertrofia do Executivo continua a ser um problema cada vez mais confrontado. A estabilidade do sistema eleitoral, por um lado, e as expectativas dos eleitores e dos eleitos , por outro, comprova que todos acreditam na existência da função em parâmetros ainda monárquicos. O plebiscito de 1993 não resolveu isso.

Por outro lado, a tentativa de descentralizar o poder com Estados continua a não surtir efeitos. A autonomia concedida ao Município - em que pese as justificadas críticas que recebe em razão da dificuldade de controle externo (são 5570 entes da República nessa categoria) - pode ser um fator mais real a fazer com que o povo se sinta protagonista do poder. Nessas três décadas não houve avanço em relação à construção das Regiões como instância política. Antes, houve o seu descrédito.

O unitarismo ainda dita as regras. Apenas com a reforma administrativa da Emenda Constitucional nº 19/98 e a maior descentralização de atividades - ainda que não acompanhada de um redesenho do federalismo financeiro - passou-se a exigir a atuação de Estados e Municípios em estilo federativo (como nos consórcios, artigo 241).

Mas ainda há dificuldades em se fazer entender que a atuação paralela, cooperativa e em comum de Municípios, Estados, Distrito Federal e União, sem hierarquia e prevalência do mais abrangente sobre os demais, é a regra escrita desde 1988. Mais, ainda há a dificuldade para se entender que há uma separação das funções públicas e o poder não pode ser exercido para satisfazer interesses de um Poder com uso ou submissão da atuação de agentes do outro. Mas isso se dá publicamente e de modo aceito por muitos, numa subversão da ética pública.

Não é que as instituições - enquanto espaço de salvaguarda dos avanços democráticos - estejam frágeis. A verdade é que nossas garantias institucionais (Schmitt) sempre foram frágeis. A transição a que aludiu Paulo Bonavides é a construção dessas garantias de modo legítimo. Ao tempo da revisão constitucional (e da busca da tríade diretas-constituição-parlamentarismo), Roberto Campos falara na Dupla Travessia: para a democracia política e para a economia de mercado. Contudo, não são travessias, senão mudanças de fórmulas pela ausência do elemento finalístico humano como razão de ser dessas promessas. É uma promessa de expectativas, ou seja, promessas-promessas. E, ainda que o resultado possa não ser garantido, não ter bússola não ajuda a chegar ao destino. São valiosas, todavia, suas observações acerca das dificuldades geradas pelos modelos econômicos e pelas crises políticas para a construção de um modelo de legitimação popular que, de fato, dê estabilidade ao país para prosseguir sua jornada.

Enfim, é uma longa etapa de transição para a maturidade institucional, uma adolescência balzaquiana.

E, talvez, o principal passo seja aceitarmos que a Constituição contém dispositivos autoritários que aceitamos; normas que privilegiam o unitarismo e a prevalência do Executivo. Nós aceitamos interpretações que reduzem o alcance da democracia e da participação popular. Dispositivos são reformados para manter o poder de grupos políticos nacionais ou locais de maneira personalista.

Adoramos nos inebriar com redações republicanas e democráticas de alguns dispositivos como se fossem carros abre-alas de escola de samba, a ponto de esquecermos a crueza da estrutura que os move. A beleza não está presente em silêncios e em dispositivos que, analisados friamente, mantêm a lógica patrimonialista e permitem a troca espúria de interesses em corredores de tantos palácios. Não, ela não é bonita. Ela foi feita democraticamente, mas isso nem sempre se transmitiu ao texto ou a quem o executa. Ela é anti-discricionária, mas ainda é autoritária, porque quem a lê, lê autoritariamente, e quem a usa, usa autoritariamente. Não, não há beleza na sistemática construída, a sua teorização - o que lhe subjaz - não é tão bela quanto a Constituição que está nos manuais porque os juristas assim desejam.

Agora, precisamos de uma transição mais ampla, estrutural, dos pilares que suportam a democracia e a República.

Quando, em 1789, Luís XVI impediu a reunião dos Estados Gerais, os deputados do Terceiro Estado, mais alguns clérigos e nobres se reuniram num espaço dedicado ao jogo da palma, ou de pela (jeu de paume), ancestral de vários esportes como o tênis, a qual é próxima do Palácio e do Hôtel des Menus-Plaisirs, onde se davam as sessões para debater a crise no Reino. Lá, eles juraram não se separar e se manterem unidos onde as circunstâncias exigissem, até que fosse elaborada uma Constituições sobre sólidos fundamentos. Entre os protagonistas estava Emmanuel-Joseph Sieyès. Isso foi no dia 20 de junho e representa um dos momentos fundamentais da Revolução Francesa. Os deputados assim reunidos em Assembleia Nacional Constituinte se impõem ao Rei e em 14 julho se dá a tomada da Bastilha.

A Constituição é um convite a um processo democrático que tem de ser aceito. E, sim, esse germen se encontra nela e não há como ser retirado. Mas um convite aberto também é um convite a permanecer. Todavia, certas coisas precisam de um convite para sair.

A sociedade já está tão amalgamada com o processo de 1986/1988 que já não há mais início e fim objetivo dele. É preciso romper com modelos importados e construir a própria realidade institucional de maneira firme. Na desordem de nossas lembranças, há muitos entulhos enrolados uns com os outros. É tempo de começar a pôr ordem, de saber usar os mecanismos democráticos, de exigir pronunciamentos e discursos éticos e de saber que, sem construirmos relações republicanas e livres com o próximo, não construiremos nada, pois não há um reino de um só.

É chegada a hora de uma transição para a República.


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