DA DEMOCRACIA ou "diga-me com quem andas"


DIGA-ME COM QUEM ANDAS…


Fonte: Agência Reuters


por

Fabiano Mendonça

Professor Titular da UFRN

Procurador Federal



“Não vos deixeis enganar:

Más companhias corrompem bons costumes.”

(1Cr 15, 33)




Não podendo estar só, a escolha da companhia é um tema importante na vida do ser humano. Há lágrimas por isso, algumas movidas pela paixão, outras pela razão. O tema é bíblico e, para isso, invoco o primeiro versículo do primeiro salmo: “feliz o homem que não procede conforme o conselho dos ímpios, não trilha o caminho dos pecadores, nem se assenta entre os escarnecedores.”

E por que eu digo isso? Porque a democracia é a arte da convivência com o diferente. A pluralidade e o desenvolvimento retroalimentam-se nela. Pelas lições transmitidas por Santa Catarina de Sena, aprendemos que tanto o vício como a virtude dependem de perseverança. É preciso saber escolher. E por isso nós temos o direito a fazer escolhas em um ambiente democrático.

Em Henrique IV, Shakespeare escreveu esta frase: “A sabedoria e a ignorância se transmitem como doenças; daí a necessidade de se saber escolher as companhias.” Quando encostamos uma fruta podre em uma sã, logo a decomposição se alastra por ali para esta. Somos perseverantes quando seguidamente nos encostamos em algo ou alguém, talvez em uma ideia. É assim que as culturas se transformam.

E a democracia é um dado cultural. Um modelo construído para que todos tenham a oportunidade de serem ouvidos. Ao longo do tempo, foi construído o modelo segundo o qual não devem haver silenciadores. Por isso a censura é proibida.

Os Estados Unidos da América, em suas transformações históricas, construíram um modelo que passou para outros países. A ideia dos “pais fundadores” era proteger esse modelo, por isso, o país, trouxe em sua Constituição ou construiu em sua história mecanismos como: Legislativo federativo bicameral, controle de constitucionalidade desde a primeira instância judicial ordinária e eleição periódica de um Presidente da República.

A separação de atribuições públicas entre as estruturas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário é uma forma de defender a liberdade; muito cara à democracia. No Federalista, consta: “se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo; e se anjos governassem os homens, não haveria necessidade de meio algum externo ou interno para regular a marcha do governo”. É sobre essa visão negativa da natureza humana que foi estruturado o modelo de preservação do poder contra a sua usurpação por interesses pessoais.

Para isso, foi construído um sistema que contrapõe ambições e faz rivalizar interesses. Assim, ao serem distribuídos poderes entre os órgãos de Estado, cada um utiliza apenas uma parte de todas as riquezas, da abundância de prazeres e das posições de dominação social contidas na cornucópia do Erário Público. Mais, tem atribuições extravagantes na medida em que impede o avanço do outro corpo público sobre seu aprisco. É por isso que, por exemplo, só o Legislativo faz leis, mas ele mesmo cuida do concurso público para compor seus quadros técnicos e da licitação para comprar os bens de que necessitar para o seu funcionamento.

Explicado isso, ainda que sucintamente, cabe dizer que essas são razões equivocadas para nosso século. E com a invasão do Capitólio estadunidense pela população, sob o paradoxal intento de frear a ação de seus representantes e ignorar seus votos, não há a necessidade de restringir o exemplo justificador do argumento para modelos estatais sulamericanos. Em seu clássico “Do Estado Liberal ao Estado Social”, Paulo Bonavides já chamava a atenção para a falência da ideia de uma estrutura constitucional e liberal de restrições de poderes, tendente ao totalitarismo estatal.

De fato, houve uma grande mudança de paradigma desde a Constituição dos Estados Unidos, em 1787. Naquele tempo, a concepção do rule of law era de uma vedação do arbítrio pela definição de direitos e construção de penalidades ao redor deles. Hoje, e nem tão recente, há uma concepção promocional (Bobbio) pela qual o binômio legalidade-igualdade precisa de ações concretas por parte do Poder Público para promover transformações na forma como se dinamizam as estruturações das relações jurídicas. Isso aponta para a falência do modelo norte-americano de inspiração hobbesiana.

Esse modelo sacrifica a semente do presente em prol de um abrandamento futuro e incerto de um mal que fica sem ser corrigido. Noutras palavras, por receio de transbordar em desordem, deixa-se perecer o que é certo. Há uma “desumanização do mundo” (Bento XVI) e desdém às formas colaborativas de atuar. O excesso de julgamentos políticos sobre situações inaceitáveis na condução da coisa pública é uma forma como isso se manifesta.

Ao priorizar a restrição aos relacionamentos entre os poderes, ignorar o alcance da concupiscência política dos agentes públicos, construir funções atípicas beligerantes (eversão do poder pelo poder) e erigir barreiras poderosas entre as organicidades estatais, a Constituição apenas perpetua um modelo cultural de relacionamento antirrepublicano, encastela feudos oligárquicos e ara leirões para a proliferação de mecanismos novos para exercício do poder e do patrimonialismo.

Incapazes de avançar sobre a seara alheia, os responsáveis por cada Poder constróem suas próprias formas de elaborar as relações domésticas que os sustentam.

Sem foco na capacidade de negociação, com o tempo, assumem maciçamente as funções pseudo estadistas despreparados para o debate e desvinculados das reivindicações que adotam simbolicamente como discurso político. Os poderes se tornam fronteiras de espaço de influência independente, no qual atores sociais legais e ilegais se digladiam para ocupar os cargos diretamente ou por intermediários. São banqueiros, proprietários rurais, sindicalistas, trabalhadores urbanos, profissionais liberais, traficantes, milicianos, entre tantos outros grupos legítimos e ilegítimos, democráticos e ilegais, que tentam ter cada um o seu lugar ao sol, o “seu político” ou grupo de pressão. A lógica de “soma zero” impede o desenvolvimento de uma cultura de negociação, de soluções colaborativas, de ganhos recíprocos, de construção nacional.

Como fruto disso, há a elaboração, muitas vezes por meio de estruturas retóricas, de formas próprias de atuar e de se relacionar com seus apoiadores, sobretudo políticos e econômicos. O Legislativo deseja escrever suas próprias regras, a cavaleiro da Constituição, sem sofrer interferência. O Judiciário divide-se em grupos de apoio e votos “líderes de torcida”, conforme os interesses, republicanos ou não, a que esteja condicionado um determinado julgador. O Executivo digladia-se com a temporariedade republicana de sua vida útil (quase um replicante - os andróides fugitivos de Dick/Scott) e usa de todas as estratégias possíveis para manter-se no poder. Aliás, ainda hoje, a República brasileira é uma ilusão semântica escrita sobre as ruínas da monarquia (Bonavides).

O exame atento da situação mostra que a crise passa pelo presidencialismo, mas antes, reside no modelo de separação das funções estatais, calcado num exacerbado liberalismo do século XVIII. O modelo atual conduz a ilhas de soberania, que desconstroem, com o passar dos anos, a ideia de soberania única e leva alguns detentores a se julgarem realmente em um ambiente ainda monárquico e hereditário. Achar que o poder, enquanto força, é escravo de regras é fechar os olhos à realidade humana.

É urgente trazer ao centro do debate mecanismos de governabilidade de inspiração parlamentarista, revisar a forma de nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal, constituir uma Corte Constitucional, ampliar os instrumentos de responsabilização política do exercício da chefia de Estado, dar autonomia e harmonia às Funções Essenciais à Justiça e delimitar juízos de políticas públicas. Tudo isso é essencial mas não pode ser construído com uma visão de separação orgânica das funções estatais calcados em conceitos alcançados pelo decurso do tempo como um retrato de Dorian Gray.

“Em uma sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para reconhecer o que sempre deve ser afirmado e respeitado” (Francisco). Para nossa democracia, descobrir formas de inibir radicalmente palavras e atos antidemocráticos se torna tão urgente quanto descobrir uma vacina para a COVID. Esta é agora e a outra tem data marcada em cada eleição.

A Constituição de 1988 é sabidamente a mais democrática que tivemos, contudo, ela ainda não é, de todo, republicana.

E isso ocorre ou por seus dispositivos, ou pela história dos mesmos ou pelo modo como são candidamente interpretados pela comunidade jurídica. Não se gasta sequer um parágrafo para ir de encontro a aplicações equivocadas - “porque está escrito” - mas dezenas de páginas podem ser escritas para se tentar justificar o injustificável. Para aplicar certas normas, o efeito é imediato, mas outras precisam de longo debate judicial, ainda que tenham a mesma densidade normativa.

A gravidade do que ocorre nos Estados Unidos exige a atuação imediata, isenta e severa dos mecanismos institucionais. O populismo do século XXI absorveu as lições de suas versões antecedentes e flerta com o totalitarismo de uma maneira perigosa. A democracia não existe se for acompanhada por permissividades totalitárias e antirrepublicanas. Um país é aquilo com o que ele se conforma e tolera (Tucholsky).

O Direito Constitucional tem a grande missão de estar atento à ética do Poder e à preservação da democracia e deve, enquanto ciência, imunizar-se de usurpações personalizadas da soberania popular.

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