O Direito é Blade Runner

O DIREITO É BLADE RUNNER




Publicado originalmente em:
MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. (coord.) O Direito na Arte: diálogos entre o cinema e a Constituição. Mossoró: Sarau das Letras: Cine Legis, 2014. p. 15-20.




O Direito pode ser entendido de diversas maneiras: ciência, objeto, dominação, arte prudencial, leis, estudo de leis, esperança, dentre outras infindáveis formas que o observador pode dar a um objeto tão repleto de facetas. Aqui será utilizada uma perspectiva em particular: o Direito é arte.

Não é “também”, mas sim “é” arte.

Não uma arte específica e intelectual, mas em seu sentido mais amplo e conectada com o belo. E Agostinho já ensinou que a beleza não pode ser encontrada no efêmero, mas seu sentido é descoberto no conjunto das sensações; portanto, num diálogo com a vida. E Del Vecchio já afirmou (mutabilité et eternité du droit) que, em paralelo com a poesia, o Direito é um dos ritmos da vida. Aqui, determo-nos-emos na constatação de que existe um fenômeno social que cativa as esperanças de pessoas, que encanta os amantes da boa argumentação, que atrai os estudiosos das condutas humanas, o qual é artístico e que, por algum motivo, é chamado muitas vezes de Direito.

É a esse objeto que Mário Moacyr Porto se dedicou quando abordou a Estética do Direito, pois foi movido pela “similitude existente entre os processos de criação artística e os métodos de elaboração jurídica” (fundamentos estéticos do Direito).

A sensação da contemplação de algo essencialmente belo equivale à emoção experimentada na contemplação de um raciocínio jurídico virgem, de uma argumentação que no momento de ansiedade, embalsama a alma com a certeza de que algo foi alcançado. A compreensão de que é possível construir uma beleza exterior nalgum lugar, nalguma relação jurídica, a partir daquele ponto.

E é nesse momento em que cinema e Direito podem se encontrar. Nesse momento imerso no saguão de entrada de alguma sala de exibição.

Já o produto em si, suas conseqüências, suas conotações, poderão ser bem diferentes. Contar um filme, um causo jurídico, brigar mesquinhamente pelos fruíveis mas finitos bens da vida, é algo que pode ser bem diverso da obra que o motiva. Obra cinematográfica, obra jurídica.

Há cineastas e juristas que constroem verdadeiras obras. E assim chamamos em metáfora com a edificação.

Cabe ao artista captar a beleza.

O artista é aquele que permite aos seus sentidos se impressionarem com as flutuações mais sutis do meio ambiente onde se insere. Ele capta aquilo que a muitos pode passar despercebido. Após, ele transforma isso de acordo com a habilidade expressiva que possua. O que, por sua vez, irá impressionar e conseguir transmitir a essência de sua mensagem apenas àqueles que também tenham minimamente a percepção direcionada para a mesma linguagem.

Essa linguagem pode ser sonora. Pode ser visual. Pode ser tátil. Pode unir todos os sentidos, numa inebriante e bacante entrega a sons, odores, alucinações, sensações e gostos. Pode ser perdição. Pode ser arte.

Isso não é uma busca, mas uma circunstância. É uma forma de estar no mundo e falar dele nele. E nessa forma de ser, nessa forma de ver o mundo e contar como o viu, é que encontramos os paralelos entre o Direito e o Cinema.

Na prática docente, pela necessidade mesmo de dialogar de maneira compreensível e diversificada, filmes são uma constante pedagógica.

E permitindo-me deixar o texto em primeira pessoa, já utilizei vários, uns mais outros menos.

Gosto de identificar as seguintes classes de filmes no seu uso didático: a) aqueles que explicitamente transmitem seu objeto, sem deixar espaço para maiores atividades inventivas do intelecto – exceto sua serventia para suscitar questionamentos mais aprofundados e dar a conhecer fatos não conhecidos ou que não se quer ver; e por isso são importantes; b) aqueles que tratam de questões jurídicas em seus enredos e conduzem a assistência a imaginar porquês e ficcionar realidades alternativas; e por isso são importantes; c) aqueles que tratam de questões da sociedade e deixam aberta a possibilidade, e às vezes a ansiedade, para que se compareça com a análise jurídica pertinente; e por isso são importantes; d) aqueles que não fazem nada das hipóteses antecedentes, mas são um veio rico para metáforas, comparações, criatividade, invenções; e por isso são indispensáveis.

No primeiro grupo encontramos documentários, filmes que buscam retratar com fidelidade grandes acontecimentos. No segundo encontramos tipicamente os filmes de suspense judicial e de temática diretamente jurídica. No terceiro, estão os filmes que tratam de problemas sociais, guerras, corrupção, intrigas internacionais etc. No quarto grupo, encontramos qualquer outro filme que desperte no artista sua capacidade de vislumbrar o oculto não tão oculto.

Assim devem se alternar metodicamente reconstituições de época, dramas judiciais, cineastas sensíveis e filmes simplesmente belos.

O Direito é uma linguagem que emana de algum local ainda não bem identificado na psique humana – ou talvez até saibamos, mas fica mais belo achar que não, pois quando soubermos ou vamos querer arrancar ou os mais sensíveis podem ficar sem objetivos; e estes são muito bons. E se o cinema transmite uma mensagem que também emanou dali, então o diálogo, o flerte, o reconhecimento, é inevitável. E, como em todo diálogo, todos crescem com ele.

Como dito, já utilizei e indiquei vários filmes como complementares ao conhecimento jurídico.

Listo alguns e novamente recomendo ao leitor, pelo Direito ou para achar as rotas de fuga dele (porque nada melhor do que fugir de uma cidade para poder contemplar sua beleza de longe; depois você retorna a ela – mas ela já estará diferente):

  • Antz (Formiguinha Z) – a dublagem principal desta animação, a cargo de Woody Allen, já deixa entrever seu mergulho contemplativo. Por quê a sociedade tem regras que não questionamos? Por quê não as questionamos? Uma formiga não pode pretender um mundo diferente ou posições sociais diferentes? Ah, as aulas de Sociologia Jurídica.


  • Minority Report – preciosa e delicada relação entre Fé e Razão devida a Philip K. Dick (o mesmo de Blade Runner). Seres pré cognitivos (pre cogs) são mantidos em um local chamado Templo a partir do qual pessoas que os usam tentam prever o futuro e impedir que ocorram crimes. E se um desses crimes pudesse ser evitado? Existe destino? Quanto a nós, o Direito não determina medidas cautelares antes mesmo que o ato seja feito? E quem garante que seria feito? Permite inúmeras reflexões sobre responsabilidade (posso ser culpado por algo que não fiz?) e sobre a existência acobertada de inúmeros valores pré racionalizantes na ordem jurídica. Nossa “tradição” jurídica é uma adaptação de rituais pré modernos para encobrir o desejo de eliminá-los numa mente que nunca os afasta. Mestrado.

  • Matrix – A vida como um mundo irreal. A transliteração deste é mais direta. Há um mundo jurídico hermenêutico mais profundo do que o que vemos. Nossa vida é feita de decisões. Como sair desse círculo? Aceitarei o que está por trás? Aceitarei um posicionamento jurídico que fuja do convencional?

  • Robôs – animação da Dreamworks. Um jovem robô descobre que foi feito em meio a excluídos. Foi construído e gerado em meio a peças rejeitadas. E então assume a defesa daqueles que serão “tirados de linha” para possibilitar um novo marketing empresarial. Qualquer semelhança com a sociedade não é mera coincidência. Ordem Econômica.

  • O Rei Leão – Hamlet, como meu filho me ensinou. À parte o foco no drama shakesperiano do jovem em dúvida sobre o amor ao pai, a aceitação da culpa e da pena e o íntimo do outro, é uma aula sobre as estruturas que circundam o poder, a divulgação de idéias e a sempre presente luta pelo terreno. Ciência Política. Debates com o professor Vladimir França.

  • Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída – O filme vale por si e por sua história real. O Kids alemão é bem mais rico e envolvente, além de uma década mais maturado, vintage. Ele pertence tanto à categoria das questões sociais como das metáforas. Foi irresistível fazer o texto Constituição F., 15 anos, depois de tantas “violações” constitucionais. Lembranças das conversas com o professor Paulo Lopo Saraiva.

  • Crash (2004) – Preconceito e direitos humanos a toda prova. O que nos leva a ver no outro um objeto? O que nos torna humanos? Algo em nós ou em nosso comportamento? Como podemos odiar alguém que nunca vimos? Como podemos aplicar direitos a situações que nunca vivenciamos? Emocionante.

  • O Contador de Histórias – a história encantadora de Roberto Carlos Ramos, ex interno da FEBEM que de menino de rua tornou-se professor e requisitado contador de histórias. A sua pedagogia do amor prova que o amor e o carinho podem mudar a vida de muitos. E talvez até o preconceito. Uma realidade para muitos difícil de aceitar.
  
Todos esses são apenas exemplos de uso didático do cinema. Uns com mais, outros com menos identificação artística com o fenômeno jurídico. Pensei em falar deles. Mas seria apenas acrescer filmes em uma listagem certamente já bem elaborada. Optei então por outro método. Recorrer aos que aqui chamarei de metafóricos. Aqueles que levou o já citado Mário Porto a dizer em lição muito repetida mas que faço questão de trazer pois é sempre bom manter vivo o que passa tempo sem ser dito:

A lei não esgota o Direito como a partitura não exaure a música. Interpretar, é recriar, pois as notas musicais, como os textos de lei, são processos técnicos de expressão e não meios inextensíveis de exprimir. Há virtuoses do piano que são verdadeiros datilógrafos do teclado. Infiéis à música, por excessiva fidelidade às notas, são instrumentistas para serem escutados e não intérpretes para serem entendidos. O mesmo acontece com a exegese da lei jurídica. Aplicá-la é exprimi-la, não como uma disciplina limitada em si mesma, mas como uma direção que se flexiona às sugestões da vida. (ob. cit.)

O Direito é então, Blade Runner. Um filme noir ousado. A história do caçador de andróides aposentado que mesmo assim é chamado para resolver um problema grande para os que desejam manter a sociedade como ela é: buscar seres criados pelo gênio humano que tiveram que ter suas vidas limitadas devido à capacidade de se sentirem como humanos.

A pergunta: quem deu ao Direito e aos juristas o poder para identificar quem é igual e quem é diferente? A impor hipocritamente qual a melhor escolha, quando muitas vezes já fez o que condena?

Essa perspectiva nos leva a indagar sobre o quanto nos esforçamos para não estarmos entre os candidatos à exclusão, como o receio de descobrirmos uma identidade incompatível com o que sempre nos foi dito como o comportamento ideal. O Direito age como um cão de guarda de um modo de ser. A ainda que não se deseje equipará-lo a um mantenedor de status quo explorador, um exame mais crítico mostra que é uma emanação de uma norma social grupal que busca a afirmação hegemônica.

Essa perspectiva noir do Direito leva-nos à reflexão seguinte que esse blade runner deve fazer: e ela está em The final cut (Violação de Privacidade, no Brasil;  A Última Memória, em Portugal). Numa realidade hipotética, o que fazer se você souber que sua vida pode ser toda vista? E se Deus existir? Se o que eu faço puder ser visto, o que eu sinto agora, o que eu sentirei nesse momento? O que a reflexão real e séria sobre nossa vida pode revelar?

Como alguém se comportaria se houvesse a perspectiva real de ter submetido ao Direito todos os momentos de sua vida?

Na verdade, a aceitação do Direito parte da perspectiva de que há uma seleção de quais comportamentos serão aceitos por um grupo e impostos a outro. E na alternância de poder, dá-se um jogo, regulado por regras de um processo argumentativo que constitui um diálogo entre esses sujeitos políticos. Isso pode ser bem evidente na questão prisional.

À sociedade que limita a vida das pessoas – não necessariamente física, mas no que fazer, no que desejar, no que pensar - num círculo sem fim, a resposta está em Logan’s Run (Fuga do Século XXIII, na série dos anos 70): o andróide que aprende a chorar. O lamento máximo da sociedade que não se expressa está numa criação que se comporta humanamente. Enquanto isso, fugitivos procuram se ocultar de caçadores em busca de um idílico local de salvação. Mas nesse mundo ele não existe.

A vida pressupõe a perspectiva de uma liberdade real. De uma existência ativa. E nisso não vai nenhuma perspectiva que permita ao homem dominar o outro sob a desculpa de ter a própria liberdade. Apenas os que têm a certeza de manter o que possuem pensam assim. Nunca viram o outro.

É nessa tentativa de dominar o mundo, de dominar a vida, numa busca desesperada por um paraíso perdido, que se move o Direito. Perdido, sem saber o que fazer, dono de respostas vazias e incapazes de alcançar o fim a que se destinam. Num contínuo experimentar de si mesmo de olhos fechados para o que deixou para trás. Mas estamos vivos, não estamos?



Fabiano André de Souza Mendonça

Professor Titular da UFRN. Procurador Federal.

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