“Essa República não existe; é uma ilusão semântica.
O que existe é o Estado unitário, de 90 anos, nascido a 15 de novembro de 1889
sobre as ruínas da monarquia.”
(O caminho para um federalismo das regiões, 1980)
Após 95 anos, encerrou a presença física do professor Paulo Bonavides entre nós. E nós recordamos alguém pelos momentos em que as vidas se entrelaçam, encontram-se e brilham sobre nós.
Corria o ano de 1996, era o dia primeiro de fevereiro, e eu e o hoje professor Vladimir França, estávamos na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará à espera da realização da prova oral da seleção para o Curso de Mestrado da prestigiosa e hoje centenária instituição. Havia então apenas quatorze mestrados em Direito no país; dois eram no Nordeste. Então, era uma ousadia. Apenas para mostrar o cenário acadêmico local, fui provavelmente o décimo mestre em Direito do Estado. E naquela ocasião, fui selecionado em segundo lugar, com bolsa, contudo, por diversas circunstâncias, não pude permanecer na capital alencarina.
Foi quando passa por nós um senhor, muito simpático, cumprimenta-nos e indaga se aguardávamos a seleção. Chamou a atenção a tranquilidade e simplicidade. Veio a presidir aquela banca. Pouco depois, logrei adquirir um exemplar da “Antologia Luso-Brasileira de Direito Constitucional", obra organizada pelo Professor Paulo Lopo Saraiva em homenagem ao seu mestre homônimo. E qual não foi nossa inesquecível surpresa ao ver estampada nas primeiras páginas a foto em destaque daquele gentil senhor.
Tornei a encontrar o professor Paulo Bonavides em 1999, durante a XVII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada no Rio de Janeiro, quando então fomos apresentados pelo professor Paulo Lopo, membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB, presidida por aquele - que dela permanecia hoje como membro honorário. Na ocasião, de modo muito simpático e condescendente, ele teve o cuidado de indicar a leitura de algumas publicações recentes do meio jurídico a este então constitucionalista novato. Conversamos sobre os receios e ameaças da época à democracia. À noite, a animação foi assistir o espetáculo do cantor e compositor Roberto Carlos. Recordações frugais de entusiasmos simples.
A partir daí, diversos momentos se sucederam nos quais tive a oportunidade de privar do contato com o professor Paulo Bonavides e banhar-me em sua sabedoria e humildade. Recordo de um almoço no qual conosco também esteve o grande constitucionalista português professor Gomes Canotilho - que me deu a honra de ser meu orientador - e que é um grande entusiasta do professor Bonavides e seu pensamento filosófico.
Em outra oportunidade, vi-me a admirar seu nome estampado em pedra no saguão da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa na relação de doutores honoris causa daquela Casa de Saber. Era muita alegria ver a que ponto poderia chegar um nordestino vindo do interior e incansável cavaleiro em defesa da dignidade humana. Uma prova do respeito e admiração internacional que granjeara.
Noutro momento, de maneira simpática e inesperada, quando nos encontramos em um evento jurídico, teve o cuidado de ir ao seu quarto de hotel e retornar com um exemplar da mais nova edição de sua “Ciência Política”, devidamente autografada com seu “cordial abraço”...
Esse incansável humanista recebeu homenagens as mais diversas. Delas, destaco as palavras do professor Friedrich Müller, coletadas pelo incansável admirador do pensamento bonavidiano Dimas Macedo, que o considerou “extraordinário” (außergewöhnlichen). E o que lhe dava essa característica era a sua humildade, pois não precisa destacar nenhum status científico ou de aparência.
O professor Paulo Lopo costumava dizer que, dos missionários constitucionais, ele era o pontífice, e os demais, seus cardeais. Todos em uma missão de construir a democracia.
Deixa-nos obras clássicas como os seus “Curso de Direito Constitucional”, “Ciência Política” e “Do Estado Liberal do Estado Social”. Herdamos os incontáveis artigos em que defendeu de modo direto, ousado, claro e desassombrado, a República, a Democracia participativa, a Federação, a Legitimidade Constitucional, a Dignidade Humana e os Direitos Fundamentais. E o fez mesmo nas épocas em que era mais difícil levantar a voz contra o poder do Estado. Sua visão à frente do tempo nos mostrou grandes pensadores, ideias, desengavetou teses, moldou a importância dos princípios e explicou a supremacia constitucional sem neologismos ou importação cega de ideias, mas com um pé firme na história e na construção autônoma de um pensamento constitucional brasileiro.
Hoje, a cidadania brasileira se transforma, sobretudo, em gratidão a Paulo Bonavides, esse grande cidadão, esse grande humanista, esse constitucionalista que era do mundo, mas com raízes bem fincadas em suas origens.
Um abraço, professor Paulo!
Por Fabiano Mendonça, em 30 de outubro de 2020.
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