(A autoridade aglomeradora vai para o divã)
Em minha vida, sigo uma antiga história de que um dia um mestre
lavou os pés dos discípulos para demonstrar que o importante era servir. Não
consegui impedir que isso viesse à minha mente diante da cena que presenciei.
O exercício da docência exige que acreditemos no que fazemos. Por isso, imaginei uma situação: a pessoa, deitada num divã, em uma sessão de terapia, relata as dificuldades do seu ofício, reclama do distanciamento social, não compreende as irresignações diante das decisões que toma, julga-se injustiçado... e, o pior para alguém com sua formação, traído!
Na tela em frente, como numa ceia sagrada, um presidente da
república centralizava o vídeo, ladeado por seus auxiliares diretos, pelo
vice-presidente, pelo filho e suponho que por outros integrantes de seu
governo.
Isso foi à tarde. Pela manhã, um ministro popular e seu
grande aliado deixara o cargo, mas não sem antes dizer que não concordava com
atos praticados e que o presidente fizera ingerências antirrepublicanas em suas
funções. Horas depois, o presidente assumiria que o auxiliar era "lamentavelmente desarmamentista".
Ao menos por “vergonha alheia”, chego a pensar que alguns
dos presentes podem ter vaticinado uma “saída estratégica pela direita” (ou
pelo centro, não sei) ainda durante a transmissão.
O senhor que falava estava visivelmente magoado e, no
esforço para aparentar calma, tinha dificuldade em correlacionar os fatos entre
si.
Ele procurou demonstrar duas coisas: a primeira, é que sacrifica
a si e à família pelo país, pelo qual “daria o sangue”; mas preferiu chamar o
filho repetidamente por um código numérico, como numa daquelas instituições
onde a personalidade não interessa muito (“zeroquatro”). A segunda, é que está
muito magoado com o comportamento do ex-auxiliar.
Contudo, além disso, também foi claro o sentimento de alguém
indefeso e que se sente impotente. Não foram poucas as menções, aliás, foram
insistentes e repetidas, a sua “autoridade”, superioridade, relação com “subordinados”.
Para ele, facilmente a situação de negociação e diálogo se torna um ato de “implorar”.
Talvez por isso todos tenham permanecido, até o advogado-geral da união o qual,
mais que um ministro é o chefe de uma Função Essencial à Justiça.
Enquanto o agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública
iniciou seu pronunciamento comentando o zelo com aglomerações, o Presidente
iniciou com toda a tropa “unida”. De rebelde, apenas o “mascarado” Ministro da
Economia. Mas até o Ministro da Saúde estava lá com seu olhar atento.
Mas, em vez de redarguir ou apresentar provas contundentes
de que não interferiu no funcionamento do Ministério, o Presidente enviou com
passagem só de ida às favas o republicanismo e afirmou que, como chefe, tinha o
direito de que o crime do qual foi vítima fosse apurado com prioridade. Supõe-se
que não estivesse a ser.
Entretanto, ele não será o primeiro cidadão a acreditar que seu caso não
é apurado com a presteza necessária pelo Poder Público. É comum pacientes e
clientes reclamarem de médicos e advogados por fatos sobre os quais estes não têm
controle. Imagine se ele mantiver contato com a vítima de um crime que espera
defronte uma delegacia, ou então a alguém de atestado que aguarda numa fila do
INSS ou a uma mãe que não consegue vaga para a filha na escola.
Parece que o ocupante do cargo entende que, por ser o presidente,
em vez da regra de que todos são iguais, ele é diferente. E ficou ressentido
por achar que um crime de forte repercussão internacional que vitimou uma parlamentar
municipal da localidade onde ele mesmo tem sua base eleitoral estaria a ter
maior atenção.
Isso é uma interferência inadmissível em uma República!! Não
se está numa monarquia (onde interesses do monarca e dos seus filhos poderiam
estar em primeiro lugar).
Em um Estado de Direito, a primeira regra é que o Estado se
submete ao próprio Direito que elabora. E, para além dos atos institucionais
que pratica, o ocupante de um cargo é um cidadão com os mesmos direitos que
todos.
E o Presidente do Brasil se irrita porque descobre que no
seu país a polícia não tem condições de atender a todas as demandas dos
cidadãos na velocidade que estes gostariam.
Enfim, ele assume que quis trocar o comando da Polícia Federal e que pediu isso várias vezes.
Mas que considerou uma relutância indesejável do subordinado não atende-lo.
Afinal, se ele manda, ele pode fazer.
Mas a questão é essa: cada cargo, na estrutura jurídica, tem
sua função. O fato de ser superior não autoriza o ocupante a praticar o ato do
subordinado. No máximo, direcionar sua atuação. Um reitor de universidade
simplesmente não pode substituir em sala de aula o professor que bem entender,
da área que bem entender. A autoridade será do professor no exercício de sua
função. O resto é mera política de bom relacionamento, fraqueza de espírito ou politicagem
barata.
Ou seja, ele determinou. Afinal insistiu que tem “autoridade”
e que “continua” assim ("não vou aceitar me submeter a um
subordinado"). Por isso soou contraditório aos brasileiros quando disse
que sempre deu liberdade aos ministros ("nunca impus nada a um
Ministro"). Ninguém pareceu ter falta de juízo para desdizê-lo ali de público.
Aliás, para um fato que o ocupante da presidência julgou tão
mentiroso, trazer, como num rebanho, todos os seus “subordinados” deu especial
significado cívico. Ou seja, o assunto há de ser mais importante.
Mesmo assim, o presidente preferiu destilar temas como seu
esforço para interferir no INMETRO e assim beneficiar motoristas profissionais
para que estes não tivessem que trocar o tacógrafo. Mas não sem antes dizer que
encontrou irregularidades no órgão. Ora, para não ser o crime de prevaricação,
precisaria dizer que providências adotou.
Porém, pareceu-lhe ser mais importante demonstrar
austeridade falando ao povo, que vive numa das maiores desigualdades sociais do
planeta, que ordenou não fosse ligado o aquecimento da piscina olímpica que tem
em sua residência oficial. Eu não sei dizer se seria a mesma que, há mais de
dez anos, o Governo fizera aquecer por energia solar. Podem ser duas.
De modo misógino, o senhor falou de antecedentes criminais de
parente de sua esposa e disse que nem lembrava ter chamado uma pessoa de “mulher gorda”.
Além disso, revelou em primeira mão com naturalidade que a desculpa de seu
filho para não ter determinado relacionamento que poderia incriminá-lo era ter
saído com “metade das mulheres do condomínio”...
Aliás, foi além nesse tema do relacionamento. E, mesmo
dizendo que “não era para se blindar” e que não “interferia” na Polícia, pediu
e foi atendido para que determinada pessoa fosse ouvida em município potiguar.
Acho que isso confirma o que disse o ex-auxiliar.
Mas o presidente é modernista e também faz neologismos. O
presidente que defende os valores cristãos e ressaltou ser contra o aborto (e
que todos os seus subordinados também deveriam ser) falou que queriam “escrotizá-lo”.
Antes que seja tarde, procurou elogiar o Ministro da Economia,
que sofre tantas críticas. E, apesar da dificuldade em pronunciar o nome deste outro,
solidarizou-se com o Ministro da Educação que luta para “desmontar” uma máquina
ideológica.
Enfim, o que se viu foi um discurso, que poderia ter tocado
em reais problemas nacionais, de uma pessoa que está completamente conduzida por um sentimento de mágoa e um complexo de superioridade. Ele expôs isso
claramente ao país inteiro.
Contudo, junto com o divã eletrônico, ele contou que
extrapolou as raias de seu poder e que, julgando ter sido eleito para um cargo que seria
maior do que o de Presidente, cometeu várias irregularidades.
Caberá agora ao xadrez político decidir o futuro do país.
Ruim sem ele, pior com ele?
A prisão do ex-presidente Lula não acabou com o petismo.
Provavelmente, a saída de Moro não vai acabar com o bolsominismo. Mas o
Presidente pode fazer isso.
Alguns grupos de ocasião já se apressam em vender sua
solução. Agora, deve ser mais cara. O discurso de probidade da eleição se torna
cada vez mais distante. As invectivas contra o Parlamento se mostram cada vez
mais apenas falta de habilidade política. Parece que agora a saída vai depender
do ego dos envolvidos.
E, quanto ao povo, vai às ruas (ou janelas, enquanto durar a pandemia) ou espera a próxima eleição
para ver se tem aprendido com os exercícios de voto.
Por Fabiano Mendonça, cujas opiniões, principalmente neste texto, não são necessariamente compartilhadas ou pelas instituições das quais faz parte ou pelos demais membros das equipes de que participa. Afinal, ele é democrático.
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