A Competência administrativa em matéria de saúde pública na Constituição Federal de 1988


A Competência administrativa em matéria de saúde pública na Constituição Federal de 1988




Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal




"De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades,
se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados
pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também
deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional […]"

(STF, AI 598212, Min. Celso de Mello)



INTRODUÇÃO: disputas e divisões

Uma solução para um problema é algo muito bom de ser encontrado. E quando não conseguimos resolvê-lo, queremos muito que alguém a traga. E quanto mais pessoas se dispuserem a nos ajudar, melhor.

Mas, e se muitos vierem e trouxerem soluções diferentes? E se elas não forem compatíveis entre si? Como fazer? O grande problema é se isso inaugurar uma concorrência entre os proponentes para ver não qual a melhor solução, mas qual será aplicada. É parecido como um torneio de contos de cavalaria para ver quem ficará com a mão da princesa. Porém, o que eles parecem ignorar é que ela foi enfeitiçada e apenas o verdadeiro amor poderá salvá-la a tempo, antes que seja irreversível. Um drama épico.

Isso é o que ocorre quando a solução não é objeto de escolha, mas de aceitação de uma imposição. E isso é ruim. Todos querem que a princesa escolha. Eis a expectativa para o final feliz.

Nessa pequena fábula, a princesa é o que chamamos de povo. E os pretendentes são os que disputam para fazer valer sua decisão: os governantes. E o final feliz é a prática republicana da periodicidade das eleições.

É como funciona: queremos escolher, mas antes desse momento, haverá disputas para ver quem decide o melhor para nós. E, muitas vezes, não estarão necessariamente preocupados com nosso bem-estar.

Para realmente haver uma preocupação com a melhor solução para o problema, teria que ser como a mãe da princesa desse conto: preocupada em livrá-la da maldição e fazê-la feliz.

Imaginemos, então, que ela tem três filhos e eles estão a discutir, a discordar. Eles discutem e terminam por bagunçar a casa. Ela quer tudo organizado; e isso é bom para todos. Então, como é uma casa grande, ela manda cada um para o seu quarto, para arrumá-lo. Ela tem outros afazeres.

Bom, cada um tem seu quarto e organizá-lo-á segundo as suas necessidades. Mas há limites nisso: não podem manter a roupa de cama suja, as vestimentas não podem ficar no chão e o travesseiro não fica sob o colchão. Se todos cumprirem as ordens e puserem as coisas nos lugares devidos, ficará tudo bem.

Vejam bem: todos tiveram espaço para atuar e tiveram limites no que podiam fazer. A mãe tomou decisões, mas não podia executá-las. Os filhos tinham a missão de arrumar os quartos, mas podiam decidir a melhor maneira arbitrariamente. E, de certa forma, cada objeto tinha o seu lugar a ser respeitado e impunha limites aos filhos, ainda que dependessem da ação deles. Então, todas as tarefas se complementam e cooperam para o bem de todos, de modo que não se pode dizer que um seja “mais importante” a ponto de ignorar as necessidades do outro. É o Federalismo.

A União define estratégias gerais, os Estados, como os filhos, têm a liberdade de atuar no seu espaço e, como os objetos, os interesses dos Municípios são o que melhor se encaixa em cada local específico.

O ente central fica distante demais para poder tratar adequadamente os problemas próprios da vida de cada um, contudo, o ente local não tem condições de aquilatar todo o conjunto de necessidades que o envolve. É um dinâmica sistêmica, vale dizer, ambiental.

E, por isso mesmo, exige conhecer toda a sistemática de interações.

A seguir, é abordado o poder de polícia sanitário, a situação do tema na evolução constitucional brasileira e no texto atual e a jurisprudência do STF acerca do conflito de normas entre entes federados. No final, é demonstrado como o nosso modelo federativo possibilita o exercício do poder de polícia do Município, desde que não esteja diante de conduta uniformizadora preexistente do ente Estadual, o qual deve observar parâmetros federais condizentes com o estado da ciência acerca do tema.

O objetivo é responder aos seguintes questionamentos: o Município pode atuar? Qual o grau normativo a ser usado na hipótese: decreto ou lei? O Município pode regular de modo diferente do Estado? O Poder Executivo federal pode revogar os atos estaduais sobre o tema?


O PODER DE POLÍCIA SANITÁRIO

Quando a Administração Pública limita direito ou liberdade em razão de interesse público concercente à saúde ou à tranquilidade pública tem-se o exercício do que se denomina de "poder de polícia". No Direito Brasileiro esse conceito se encontra mais explícito no artigo 78 do Código Tributário Nacional.

Como se vê, não se confunde diretamente com o policiamento (força policial), ainda que a relação, pelo próprio nomen juris seja lógica: refere-se à interferência estatal direta na vida e liberdade dos cidadãos. Constitucionalmente, a segurança pública atua de modo sanitário no caso das polícias e corpos de bombeiros militares, além do dever de manter a segurança viária (artigo 144).

Quando o Governo do Estado do Rio Grande do Norte, desde meados de março de 2020, editou diversos Decretos que limitaram o funcionamento de estabelecimentos em função da pandemia de Covid-19 exerceu o poder de polícia sanitário. Porém, em recente entrevista, o Presidente da República declarou que pode assinar um ato (decreto ou medida provisória) para determinar a abertura do comércio onde estiver fechado. Na mesma esteira, diversos Prefeitos Municipais discordaram de determinadas medidas relativas ao fechamento do comércio.

Diante de uma clara divergência entre os Chefes de Executivo, cabe examinar como a Constituição de 1988 estabelece as regras de competência para tal tema. De pronto, cabe observar que o histórico legislativo e a jurisprudência são no sentido de tratar a atuação positiva do Estado no fornecimento de atendimento à saúde. Ou seja, temos debates e respostas já construídos sobre a prestação de assistência, mas é preciso tratar da sua prestação "negativa": a questão não é saber quem é obrigado a prestar assistência, manter estabelecimento de saúde ou pagar por tratamento, mas definir preventivamente proibições . Realizar interferência na esfera de liberdade negativa do cidadão.

Essa biopolítica sanitária (Foucault) é um dos exemplos mais clássicos a relação entre Direito Administrativo, Ambiental e Sanitário: a quarentena. O domínio do homem a partir de seu corpo.

Uma das funções individuais do direito fundamental (isto é, um modelo de exercício deste) é a de que ninguém pode obstaculizar o exercício de uma faculdade, e, em decorrência, outro modelo é o de que o Estado impedirá que alguém crie embaraços a isso. Há uma cumulação de uma ausência de ação externa contra o titular do direito com uma intervenção do Estado (já um terceiro) perante terceiros.

No caso aqui tratado, o que se tem é o Estado como esse próprio agente que interfere, de modo a negar a segunda parte acima descrita do modelo. Não se trata de direito ou dever, mas de exercício de poder (Hohfeld) e de sujeição.


O FEDERALISMO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO

A competência é parcela do poder estatal (uno) conferida como atribuição a um órgão. E o Direito Público é o conjunto de indagações científicas que se dedicam a analisar as limitações ao exercício desse poder. Nesse contexto, vê-se que a Constituição estabelece competências judiciais, legislativas e administrativas.

Essa divisão é de grande multiplicidade. Pois são mais de cinco mil entes federados no Brasil (a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal), todos criados de maneira juridicamente igualitária pelo texto constitucional (ainda que se possam fazer distinções de ordem econômica, política, demográfica ou geográfica, por exemplo). Nenhum criou ou deu autonomia ao outro.

E, para cada ente federado, haverá em paralelo um circuito de órgãos (Legislativo, Executivo e Judiciário para a União, os Estados e o Distrito Federal e Legislativo e Executivo para os Municípios). Isso gera uma grande quantidade de interações a serem mantidas com independência e harmonia (artigo 2º da Constituição).

A melhor maneira de sistematizar é analisar de acordo com os conjuntos orgânicos denominados de “poderes”: Executivo, Legislativo e Judiciário. Assim, vê-se que a questão da saúde, no Judiciário, a depender dos entes envolvidos, pode ser objeto de julgamento pela Justiça Estadual (quando entre particulares ou com órgãos públicos não federais) ou Federal. Mais não virá ao caso no presente momento.

Já no Legislativo, a Constituição estabelece ser competência privativa da União legislar sobre seguridade social (artigo 22, XXIII). E o artigo 194 esclarece que esta são as ações relativas a saúde, previdência e assistência social. Então, a saúde seria tema no qual apenas a União poderia legislar - o que não corresponde à realidade. De toda forma, por enquanto, cabe mencionar que a União pode editar lei complementar para que os Estados possam normatizar alguma questão específica ligada a esse tema (artigo 22, parágrafo único).

A situação ganha contornos mais específicos quando se vê que a “proteção e defesa da saúde” é tema de legislação concorrente entre a União e os Estados e o Distrito Federal, de modo que aquela está limitada às normas gerais, enquanto que estes utilizarão a competência de maneira suplementar (artigo 24, XII, c/c §§ 1º e 2º). Os Municípios estão, por esse artigo, excluídos desse rol.

Porém, o artigo 198 da Constituição, que estabelece o sistema único de saúde regionalizado e hierarquizado, determina a aplicação de recursos mínimos pelos Municípios em seus serviços de saúde. Até aí, não seria uma competência legislativa mas meramente de instância administrativa e fiscal. Essa primeira conclusão é consentânea com a evolução do Federalismo Brasileiro. Senão, vejamos abaixo.

Por mais que muitos autores usem a lógica histórico-descritiva da experiência dos Estados Unidos da América para explicar o federalismo (união de Estados que criam a nação), isso não se sustenta juridicamente; e, no caso brasileiro, também não em termos históricos. Isso gera uma lógica de “quebra-cabeças” e territorial com muitas consequências interpretativas a serem combatidas.

A que mais de perto se aplica ao tema ora tratado é a questão da inexistência de hierarquia federativa. Certo, o modo como o Federalismo foi estruturado em 88 deu quantidades iguais de cartas a todos as esferas (=autonomia), mas, seja reconhecido, deixou as melhores cartas com a União. Uma fraude? Bem, como a Carta Magna dita as regras, é preferível entender como um desafio do jogo. Eis o dilema da igualdade federal em um país assimétrico (a própria Constituição reconhece a existência de desigualdades regionais, a serem erradicadas, em seu artigo 3º, III).

O Federalismo (de foedus, associação) assenta-se na tensão inerente à distribuição de poderes entre as pessoas jurídicas de direito público interno. Tradicionalmente, diz-se: entre o poder central e o poder local. Essa menção a um poder central traz a compreensão de que deve haver, para povos e extensões territoriais muito grandes, um corpo de autoridade que se ocupe dos problemas em uma escala maior. Assim, sucede que é a forma de Estado na qual sobre as mesmas pessoas e o mesmo território estarão a valer ordens jurídicas de maneira simultânea. Daí a importância de serem harmônicas e submetidas a uma Constituição que apresente a característica da rigidez, como forma de impor um modelo que não fica à mercê das composições políticas e influxos sociais momentâneos.

No período da unificação alemã e antes do III Reich a sempre renovada experiência alemã teve então um Federalismo centralizador que dava proeminência às leis imperiais (art. 17 e 19 da Verfassung des Deutschen Reiches, ou Constituição de Bismarck).  Nesse ambiente de forte proeminência do Chanceler Otto von Bismarck era crível dizer que a lei federal (Bundes) revogava a lei estadual. O I Reich permitia, inclusive, que o Imperador dissolvesse a Câmara de representantes do povo (Volkshaus, § 79). Mas, no Federalismo de matriz norte-americana, ao qual nos filiamos, tal não se dá, pela própria ausência da figura imperial que se segue ao ambiente positivista e republicano imposto pelo Decreto do Governo Provisório nº 1, de 15 de novembro de 1889, o qual proclamou “provisoriamente [...] como a forma de governo da Nação brasileira - a República Federativa” e que as “as Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil” (artigos 1º e 2º).

É importante ressaltar que o Federalismo no Brasil vem, portanto mais de um impulso local-municipal do que Estadual. Herdeiros da experiência ibérica, os Municípios desde o Império eram dotados de Câmaras de Vereadores e de autonomia garantidas em instâncias máximas.

A Constituição Imperial de 1824 deixava claro que a elas pertencia o governo econômico e municipal das cidades e vilas (artigo 167). Era uma descentralização administrativa típica de Estado Unitário (governo local autônomo). Partindo-se para uma federação, era o mínimo a se manter. O mesmo texto constitucional ainda estabelecia que lei regulamentar estabeleceria as “funcções municipaes, formação das suas Posturas policiaes, applicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis attribuições” (artigo 169). Essa Lei veio a ser o Regimento das Câmaras, de 1º de outubro de 1828, o qual excluiu das Câmaras a competência jurisdicional (“Art. 24. As Camaras são corporações meramente administrativas, e não exercerão jurisdicção alguma contenciosa”). Essa concepção foi a incorporada pela República nascente: “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse” (artigo 68 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891).

Portanto, em consonância com a autonomia do constitucionalismo unitário português, nosso Federalismo absorve a existência de um ente dotado de autonomia para resguardar seu “peculiar interesse”. Assim já teve a oportunidade de se pronunciar o Supremo Tribunal Federal - STF: A "forma federativa de Estado" - elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República - não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou” (ADI 2024, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2007, DJe-042 DIVULG 21-06-2007 PUBLIC 22-06-2007 DJ 22-06-2007 PP-00016 EMENT VOL-02281-01 PP-00128 RDDT n. 143, 2007, p. 230-231).

A questão é que desde a Colônia havia os impostos reais e os municipais. E a discriminação de rendas tributárias sempre foi um momento de explosão de conflitos federativos de poder. Porém, Aliomar Baleeiro chama a atenção que desde 1834 (um mês antes do falecimento de D. Pedro I, então Pedro IV de Portugal) foi estabelecida a competência fiscal também das províncias, as quais poderiam ter agora Assembleias Legislativas (“o direito reconhecido e garantido pelo art. 71 da Constituição será exercitado pelas Camaras dos Districtos e pelas Assembléas, que, substituindo os Conselhos Geraes, se estabelecerão em todas as Provincias com o titulo de Assembléas Legislativas Provinciaes”, artigo 1º do Ato Adicional - Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834). Enquanto isso, o “Manifesto ao Mundo”, de 1º de janeiro de 1849, da Revolução Praieira, ecoa a partir de Olinda o pedido de uma Assembleia Constituinte que traga voto, liberdade de expressão, trabalho, protecionismo comercial, separação das funções estatais, fim do Poder Moderador e a instituição do Federalismo!

É importante observar que a Constituição (1824) garantia a faculdade legislativa da Província para seus “interesses peculiares”; a mesma expressão utilizada para os Municípios em 1891.

A partir daí, a cada evento constituinte, o foco do debate federativo era absorvido pela distribuição de renda entre estados pobres e ricos de modo a evitar um grande desequilíbrio nacional. À parte desse debate, chamava sempre a atenção a grande quantidade de atribuições dos municípios em contraste com o percentual de renda tributária cada vez menor.

No tocante à Competência dos Estados, tradicionalmente, sempre houve o tópico constitucional equivalente ao que hoje se encontra no Sistema Tributário Nacional (impostos dos Estados e outras normas de limitação fiscal); apenas que antes de 1988 era no início da Constituição. Como se vê, a definição estruturante do Federalismo sempre passou pela preocupação financeira. O que já deixa antever haver pouco estudo em temas “estreantes” como o rol de direitos fundamentais contido no capítulo denominado de Ordem Social.

Eis como era em 1891, quando os Estados surgiram: “é facultado aos Estados … em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição” (artigo 65. 2). Cria-se a expectativa: “todo e qualquer poder ou direito”, mas desde que não seja negado. Em 1988 está assim: “são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição” (artigo 25, § 1º). Nesse meio tempo, a redação sofreu alterações sutis mas esteve presente em todos os textos constitucionais: 1934 (7º, IV), 1937 (21, II), 1946 (18, § 1º), 1967 (13, § 1º) e EC 1/69 (13, § 1º).

O que mais se nota é que no regime instituído no período de 1964 a 1988 houve uma maior interferência constitucionalmente autorizada da União nos Estados, de forma a impor uma uniformidade de posicionamento. O Federalismo, nesse momento, revela-se como uma resistência à ditadura e ao autoritarismo, na medida em que cria um modelo no qual há necessária interlocução política entre várias esferas e o cidadão tem uma quantidade maior de representantes e uma maior proximidade com estes.

O Federalismo no Brasil é um aprendizado constante e apenas começa a se afirmar conforme os gestores das diversas instâncias reconhecem a própria importância e as dos outros. Sem isso, é apenas formal. Afinal, vindo de uma monarquia europeia, passando a império, depois por uma República de marechais, uma política de café-com-leite, uma ditadura, o retorno do ditador pelo voto, mudanças de sistema, uma ditadura militar e sucessões presidenciais acidentadas, é esperado que o próprio político acredite que é eleito para ser monarca e que o povo cobre isso.

Os Estados tiveram a menção constitucional às “peculiaridades” de seu interesse até a Carta de 1937. Em 1946, essa expressão foi aplicada apenas aos Municípios. E, em 1988 ela não é mais utilizada no plano federativo, restando em seu lugar a competência municipal para “legislar sobre assuntos de interesse local” (artigo 30, I). Eis a evolução do tema até o momento no que importa para nosso debate.


A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A guarda da Constituição é explicitamente entregue por ela mesma à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sem qualquer restrição de Poder e de modo comum: “zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público” (23, I; grifos inexistentes no original). Apenas uma visão ultrapassada e conflituosa entrega essa função apenas ao Supremo Tribunal Federal, ao qual cabe, como sua missão precípua dentro da estrutura judicial a “guarda da Constituição” (102, caput). Tal decorreu das pressões realizadas no decorrer do processo constituinte quando foi debatida a necessidade de reconfigurar o Judiciário nacional, preferencialmente com a criação de uma Corte Constitucional; o que lamentavelmente foi abortado, inclusive, de modo condizente com o desejo de diversos então titulares da Corte.

Todos os poderes exercem essa missão do modo como se estruturem. E esse dever aparece explícito, transborda, no texto constitucional no momento em que são mencionadas as funções institucionais do Ministério Público no artigo 129, II: “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. Esse é um princípio válido e aplicável a todo o Poder Público, sobretudo em respeito ao Estado de Direito.

Mas o Judiciário é o palco principal do debate quando a perspectiva não é mais ampliativa nem conciliadora, mas de distribuição de direitos. E nesse momento, ainda que não seja por si um centro doutrinário ou de compromisso estritamente jurídico (vez que sua composição atende a critérios políticos), sua posição é a decisão estatal sobre a interpretação do texto constitucional. Portanto a decisão do STF, sobretudo em controle de constitucionalidade, é uma norma estatal e deve ser considerada pelo jurista como um dado social a ser confrontado com o senso de Justiça. Sobretudo, porque o STF foi erigido pelo constituinte em Tribunal de Federação (outro é o Senado, pela sua própria composição) pelo artigo 102, I, “f” (julga originariamente “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta”). Esse dispositivo não trata do Município, contudo, por via recursal as demandas podem ser apreciadas; como o são. Para invocar tal permissivo, é preciso que o debate seja efetivamente de índole federativa.

Curiosamente, esse dispositivo está presente desde a primeira Constituição Republicana (artigo 59, I, “c”, “as causas e conflictos entre a União e os Estados, ou entre estes, uns com os outros”) e é inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América (“[...] controversies between two or more States; between a State and Citizens of another State; between Citizens of different States [...]”; art. III, sç. 2). O que mostra a perenidade da influência desse modelo federativo no Brasil.

É nesse contexto que se mostra importante ver como o tema tem sido tratado pelo Poder Público, nas decisões do Supremo Tribunal Federal.

Não há como determinar um interesse que seja exclusivo da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, pois há um entrelaçamento muito forte, sobretudo em questões de saúde. E aqui é importante fazer uma precisão: o direito à saúde, por envolver o sistema biopsíquico humano e seu funcionamento individual e coletivo para assegurar seu metabolismo regular, entrelaça-se com vários outros campos específicos. Assim, saúde implica falar em condições de trabalho, em poluição, em meio ambiente, em empregabilidade, existência de unidades de saúde, estrutura administrativa etc.

Portanto, se não se pode separar na maioria das vezes um interesse exclusivo de um ente federado, também não se pode separar uma questão exclusiva da saúde.

A pandemia de COVID-19 nasce, ao que tudo indica até o momento, de problemas ambientais. O relacionamento predatório do ser humano em relação ao meio ambiente. Nasce, mas não se configura como tal. No momento em que se buscam soluções medicamentosas, protocolos clínicos e leitos hospitalares, é um problema de direito sanitário; não ambiental ou administrativo.

Porém, as características difusas do contato do homem com o ambiente também são compartilhadas pela questão de saúde. E então os raciocínios são próximos.

A poluição gerada em um Município, pelos rios, pelos ventos, pelo lençol freático, chega aos vizinhos e até a locais distantes. Cada um pode acrescer algo. Quem foi o poluidor? Por isso é importante um tratamento homogêneo. Isso o Estado pode proporcionar.

Se um Município resolve tomar para si a proteção do meio ambiente, ele pode fazê-lo? Se justificadamente é um interesse local, sim. A Constituição confere-lhe essa competência.

Tanto em termos de saúde como de meio ambiente, a competência será concorrente entre a União e os Estados ou o Distrito Federal. O Município, por sua vez, é o centro natural no qual decorre a vida do titular de direitos fundamentais. Uma norma emanada de um local mais distante não pode usurpar essa autonomia.

Dessa maneira, se configurada hipótese local, apenas excepcionalmente ela pode ser retirada. Contudo, é preciso ver que milita em prol da localidade o elemento da residualidade (complementar ou suplementar à lei de outro ente) e em prol da generalidade o elemento da necessidade de uniformização e, diante do caráter excepcional, pode-se dizer, da imprescindibilidade desta uniformização. A autonomia se converte numa regra de liberdade de escolha local (autolegislação, autogoverno, autoadministração, autoorganização) que não pode ser mitigada pelo Estado (ADI 3549) ou pela União.

Se há (i) norma apta a regular o tema emanada de instância mais geral, a qual (ii) respeita os limites constitucionais e que está lastreada em (iii) imprescindibilidade de uniformização, então esse é o caso no qual não poderia haver norma local. Não é hierarquia, mas respeito à competência. Se as normas propõem soluções divergentes para a mesma necessidade, então esse é o critério a ser utilizado.

Certamente muitos aspectos surgem da análise das medidas relativas à pandemia: saúde, meio ambiente, emprego, geração de renda. A análise fatiada dos direitos fundamentais conduzirá a severos riscos de argumentações meramente parciais. Os direitos não se separam. O que se dá é que, ao visualizar qual o que está de fato a ser discutido, ele estabelece um sistema de preferências entre os valores.

Esse é o raciocínio que o STF esposou no RE 586.24 (Rel. Min. Luiz Fux) de cuja ementa se retira: “o Município é competente para legislar sobre meio ambiente com União e Estado, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados”.

Sobre a competência dos municípios já se pacificou, por exemplo, que detêm competência para legislar sobre o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais sem ofender a legislação de outros entes, ainda que isso seja competência concorrente sobre produção e consumo de bens e proteção e defesa da saúde; sem desmerecer a temática da livre concorrência e da liberdade empresarial que, num exame de direitos fundamentais deve ser observada. Nesse sentido há a Súmula Vinculante nº 38, a ADI 3691 e o AI 622.405. Já houve negativa ao Estado de regular o tema (ADI 3731).

Por outro lado, o STF já disse que a imposição de sanção mais gravosa a infração de trânsito extrapola a competência municipal (RE 639.496). Tema que seria de competência privativa da União.

Por fim, afora o já mencionado caso sobre legislação ambiental, o julgamento que mais é apto a servir de leading case na seara sanitária é o referente à produção e comercialização do amianto crisotila. Seu potencial cancerígeno levou a documentos internacionais contrários ao seu uso e à responsabilização de governos. Ele contamina o ambiente, a comunidade, os trabalhadores, a cadeia de distribuição e o consumidor. Portanto, em termos de saúde, tem elementos que o habilitam a ser comparado à pandemia pois exige um combate geral.

Na ADI 3937 há minucioso exame da questão em sede de Direito pátrio e internacional, do trabalho e da saúde.

Na competência concorrente, não pode haver sobreposição de atuações, de modo que, havendo norma geral, não pode o Estado atuar de maneira contrária à mesma.

O STF considerou então que as bases fáticas e o conhecimento científico sobre o qual se assentava a legislação federal (que teria sido contraditada pela estadual) não atendiam mais os preceitos de proteção à saúde, que é um direito humano. O que a tornaria inconstitucional.

Assentando-se, inclusive, no fato de que o uso do amianto crisotila não era necessário, viu-se que a norma geral federal que o permitia não era mais válida. Isso abriu ensanchas à competência legislativa plena do Estado.

Por fim, na STA 175, o STF apreciou a judicialização da saúde; o que fez após a realização de audiência pública sobre o tema (a qual apenas atesta a falência do modelo processual tradicional para abordar políticas públicas e a impropriedade do tema junto ao Judiciário em larga extensão). Ficou reconhecido haver um direito à existência de políticas para promoção, proteção e recuperação da saúde e que o mesmo deve ser atendido de acordo com uma competência comum de todos os entes federados (artigo 23, II, que, ressalte-se, não é apenas de matéria administratriva, mas também legislativa). Essa obrigação é solidária e subsidiária, atendendo ao caráter regionalizado e hierarquizado (conforme a gravidade da intervenção necessária) do SUS, que foi uma grande e marcante conquista do brasileiro na Constituição de 1988. Mas é um atendimento que tem de ser dimensionado de acordo com a demanda, a qual não se pode prever com a precisão necessária.

A intervenção judicial em tais casos deve reconhecer a competência legislativa e administrativa para a definição das políticas públicas e verificar se há omissão dupla ou obstáculo legal ou administrativo. Examina-se também a fundamentação do eventual ato existente e se há medicamento autorizado que atenda a necessidade do paciente ou se é possível tratamento com um mínimo de evidências científicas. E, no que toca à presente análise, reconhece que “deve ser construído um modelo de cooperação e de coordenação de ações conjuntas por parte dos entes federativos”.

Esse modelo de cooperação (federalismo cooperativo) é previsto pelo parágrafo único do artigo 23 e deverá ser feita por lei complementar “tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

Esse parece ser um critério claro para a atuação do ente mais geral: necessidade de atender o desenvolvimento e imprescindibilidade para o bem-estar no âmbito estadual ou federal.

A prática demonstra a importância de haver a definição desses limites, pois a solidariedade pode gerar um perigoso mecanismo de incapacidade de atender demandas ou de esperar do outro ente o cumprimento da obrigação.

Não há a referida Lei Complementar. Em razão disso, não há uma divisão de atribuições cooperativas. Porém, há lei do SUS (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990). E, se não há norma sobre a repartição em toda a esfera da saúde, há esta, que regula de modo devidamente constitucional o funcionamento de tal sistema.

Nela há parâmetros para entender os limites da competência normativa sobre o tema. Nela, a União detém a “direção nacional”, por intermédio do Ministério da Saúde:

            Art. 16. À direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:
                                      [...]
                                      IX - promover articulação com os órgãos educacionais e de fiscalização do exercício profissional, bem como com entidades representativas de formação de recursos humanos na área de saúde;
                                      [...]
                                      XII - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde;
                                      [...]
                                      XIII - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional;
                                      [...]
XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;
                                      [...]
                                      XVII - acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais;
                                      XVIII - elaborar o Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal;
                                      [...]

                                      Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
            I - promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde;
            II - acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do Sistema Único de Saúde (SUS);
III - prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde;
[...]
IX - identificar estabelecimentos hospitalares de referência e gerir sistemas públicos de alta complexidade, de referência estadual e regional;
[...]
XI - estabelecer normas, em caráter suplementar, para o controle e avaliação das ações e serviços de saúde;
[...]

Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde;
II - participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do Sistema Único de Saúde (SUS), em articulação com sua direção estadual;
[...]
XII - normatizar complementarmente as ações e serviços públicos de saúde no seu âmbito de atuação.   

E o Superior Tribunal de Justiça já disse que “os Municípios, entre outras atribuições, têm competência para planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde; participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do SUS, em articulação com sua direção estadual” (REsp 992.265/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 05/08/2009).

A União planeja, repassa valores e os Estados executam em cooperação com os municípios. Eis a síntese.

Há três situações distintas a se observar no Direito de Acesso a Políticas Públicas ou de Desenvolvimento, todos em decorrência do caráter democrático dos Direitos Humanos e da sua presença num Estado de Direito, onde o Estado se submete às normas que ele próprio elabora:
a.              O dever de planejar;
b.             O dever de colocar o planejamento em prática;
c.              O dever de alcançar os resultados desejados.

Esses são verdadeiros níveis de observância de planos públicos, os quais devem ser atendidos de acordo com a situação sob exame (não há que se colocar no mesmo patamar a redução da criminalidade e a aquisição de canetas para um órgão público, pois não podem ser exigidos da mesma maneira). A doutrina (Vidal Serrano, Jorge Reis Novais) aborda as diferentes maneiras como os direitos sociais e individuais podem ser exigidos, às vezes de modo coincidente com a clássica análise dos direitos individuais (obrigatoriedade direta e imediata), às vezes de modo diverso, como no caso do princípio da proibição da prestação insuficiente (Reis Novais). A esses níveis, agregam-se suas vicissitudes:
a.              A inexistência de planejamento
b.             O planejamento que não é aplicado
c.              O resultado que não é alcançado.

Enfim, em se tratando de um Estado Cooperativo, define Peter Häberle, ainda que voltado para a realidade do Direito Internacional, mas com plena serventia para o presente caso: “O Estado Constitucional Cooperativo vive de necessidades de cooperação no plano econômico, social e humanitário”.
A reserva do possível é um argumento com vistas a preservar os serviços públicos em benefício da coletividade, forçando-os a adotarem uma perspectiva racional. Não como forma de impedir o implemento de políticas públicas ou obstaculizar direitos fundamentais.

Aqui, há a necessidade de se limitar ao razoável o que pode ser exigido do Poder Públio. Mas não se trata aqui de limitar o direito do cidadão, mas de impor a prática da Cooperação Federativa na prestação dos serviços de saúde. É uma reserva do possível intrafederativa.



CONCLUSÃO

O que está em xeque nesta análise não é diretamente a concreção do direito fundamental à saúde. Esse debate é possível e necessário, mas referir-se-ia a situações concretas nas quais os titulares dos direitos tenham pretensões não realizadas. A questão aqui é de estrutura jurídica estatal, qual a competência. O direito fundamental em questão seria o de existir planejamento público, o qual se traduz na própria existência de normas. E o que se tem é exatamente a profusão das mesmas.
O Município, afora estar a tratar do interesse local, tem o dever de efetivar a política de desenvolvimento urbano, a qual abrange o desenvolvimento individual e a saúde do munícipe. Diz o artigo 182: “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.” Há uma ligação íntima entre a noção de função social e a de bem-estar, que também está presente na definição constitucional da função social da propriedade rural, a qual deve favorecer o “bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (artigo 186, IV).

Portanto, é interesse local, sim, regular o tema e isso não pode ser retirado, exceto se para atender a imprescindível uniformidade generalizante do poder de polícia conforme norma preexistente de outra esfera federativa consoante os direitos fundamentais; o que exige estar de acordo com os parâmetros científicos aceitos por evidências, quiçá em âmbito internacional - como é o caso da Covid-19.

Os decretos emanados do Governo do Estado do Rio Grande do Norte que limitam o funcionamento de estabelecimentos comerciais (impedindo em muitos casos o funcionamento ou o atendimento direto ao público ou dias e horários de funcionamento) podem ser analisados sob o prisma dos direitos de liberdade. Mas este não é objeto. Em princípio, parte-se da noção de que a liberdade deve pautar-se em condutas exigíveis e não há o direito a comportar-se de modo a pôr outro em risco. Cabe ao Poder Executivo fazer a gestão pública de direitos e estabelecer as relações entre os direitos e deveres a serem exercidos em sociedade: o poder de polícia.

A adoção de Decretos foi feita com respaldo constitucional estadual no poder regulamentar e na autoorganização (CERN artigo 64, V e VII). Em verdade, tal se insere na competência de gestão do Poder Executivo, vez que a limitação de liberdade - que necessitaria de lei, está contida no exercício do poder de polícia. Não se trata de uma regulação in genere do direito, mas de regulação da situação da saúde.

Poderia ter havido a opção de uso de instrumento legislativo. Não haveria empecilho; apenas a alteração de grau hierárquico para trato do tema. O que, em termos de gestão, traria dificuldades para atuar em uma situação de crise, devido à maior rigidez formal que acarreta.

Quanto à possibilidade de o Município regular de maneira divergente, ainda que ancorado na ideia de máxima efetividade constitucional, é preciso atentar para a congruência dos temas. Se o foco do ato estadual é a saúde, será sob esse prisma que deverá também desenvolver argumentação, ainda que possa atender outros objetivos correlatos. Se há o ato de coordenação estadual, é preciso demonstrar que o mesmo não atende ao direito fundamental - o que fatalmente pode levar a um debate judicial - ou que não afronta as normas gerais colocadas sobre o tema. Caso contrário, terá que atender a tal determinação. Sobretudo porque não se trata de uma regulamentação específica para um município ou mesmo geral que trate do tema de modo voltado para a regulação do funcionamento dos estabelecimentos por motivos de política econômica. Mas de saúde geral e por questão episódica que exige uniformização de tratamento.

É importante deixar claro que um ente não tem o poder de revogar atos postos pelo outro dentro do Federalismo. O que há é a potencial inconstitucionalidade do ato municipal neste caso, a ser suscitada perante o Tribunal de Justiça.

O mesmo raciocínio deverá ser aplicado a Decreto, Lei ou Medida Provisória de âmbito federal que pretenda regular o tema. No caso, seria a posteriori das regulações estaduais. A União está limitada às normas gerais. Na Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, em seu artigo 3º, § 7º, há o estabelecimento de quais medidas podem ser adotadas pelos estados e municípios (como exames, vacinação, tratamentos e requisição de bens e serviços) e alguns casos mediante autorização federal (como restrição de entrada no país ou quarentena), Perante os Estados, é uma norma de caráter geral e se insere na legislação concorrente. Pelo SUS, pela teoria dos poderes implícitos (se o Município administra a saúde deve poder ter suas normas), pode ser usada pelos Municípios. Segue as mesmas limitações dos Estados em relação aos Municípios, porém, com um detalhe: não pode descer para normas específicas; apenas dar os parâmetros, sem prejuízo de haver lacunas a serem complementadas pelos demais entes.

Pode ser complementada se houver alguma necessidade local (ou estadual), desde que não conflite com a norma geral. A lógica da interpretação é de que, se há interesse direto de vários entes, surge a possibilidade de atuação uniformizadora da esfera mais abrangente.

Esse planejamento, se dialogado e cooperativo, permitirá atender a todos os desígnios açambarcados pela temática da saúde.

O que não poderá é um ato federal ser praticado (se Decreto ou outro ato administrativo, terá que se submeter a eventual lei específica, como a mencionada) e, por si, revogar o de outro ente federado. Ele terá que atender os requisitos de uniformização, adequação constitucional e respeito às prescrições científicas, pois o Direito não pode ir de encontro a outras ciências sob pena de ser um objeto impossível ou sem sentido jurídico.


De volta à nossa estória inicial, se a Constituição for respeitada, todos poderão dormir tranquilos. Estava certa o tempo todo a mãe. Ela tinha seus limites, respeitou o atuar dos filhos, que respeitaram a necessidade peculiar de cada item. E todos dormiram com bem-estar.

Atualizações e acréscimos - em 21.04.2020, às 16h

Considerando a importância e atualidade do tema, convém trazer neste momento algumas anotações acerca das decisões que norteiam ou tem sido proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no decorrer da gestão da pandemia pela Administração Pública. Nelas, pode ser visto o uso dos parâmetros acima explanados.

Na ADI 3829, o STF já havia dito, em abril de 209, que "as regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. A análise das competências concorrentes (CF, art. 24) deverá priorizar o fortalecimento das autonomias locais e o respeito às suas diversidades, de modo a assegurar o imprescindível equilíbrio federativo, em consonância com a competência legislativa remanescente prevista no § 1º do artigo 25 da Constituição Federal."

Pode ser também transcrito um trecho da decisão na Suspensão de Segurança nº 5.362, em março último, no qual se evidencia a importância de critérios técnicos para assegurar a racionalidade da divisão de competências e assim, acrescente-se, melhor assegurar a confirmação de qual o interesse predominante. Isso reafirma o que já foi dito acima acerca da importância de a averiguação de constitucionalidade, em leis que se referem a dados da ciência, utilizar estes na medida em que disponíveis e acessíveis:


"Bem por isso, a exigência legal para que a tomada de medida extrema, como essa ora em análise, seja sempre fundamentada em parecer técnico e emitido pela ANVISA. Na presente situação de enfrentamento de uma pandemia, todos os esforços encetados pelos órgãos públicos devem ocorrer de forma coordenada, capitaneados pelo Ministério da Saúde, órgão federal máximo a cuidar do tema, sendo certo que decisões isoladas, como essa ora em análise, que atendem apenas a uma parcela da população, e de uma única localidade, parecem mais dotadas do potencial de ocasionar desorganização na administração pública como um todo, atuando até mesmo de forma contrária à pretendida."

A importância de respeitar os dados científicos também transparece na decisão exarada na Recl. 39.871.

No dia 8 de abril, na apreciação liminar da ADPF 672 (relator Min. Alexandre de Moraes), ficou dito que "não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas" em consonância com as recomendações científicas. Assim, reafirmou a competência concorrente da União e Estados e suplementar dos Municípios, sem prejuízo das normas gerais a cargo da União (inteligência dos artigos 23, II e IX, 24, XII, 30, II e 198, da Constituição Federal e da Lei 13.979/20). 

E, recentemente, em 15 de abril de 2020, o STF, ao julgar a ADI 6341, entendeu que o Presidente da República pode dispor acerca de serviços públicos e atividades essenciais, devendo, todavia, ser respeitada a competência dos demais entes. Por sua vez, atrelado ao julgamento dessa, a Reclamação 39.884, a Corte valorizou o cotejo entre a norma estadual e a federal com vistas a aquilatar o cumprimento da competência concorrente (o caso não foi admitido por questões de índole processual).

Invocando o conceito de "predominância do interesse", em 17 de abril o STF, na Suspensão de Segurança 5.364, o Ministro Alexandre de Moraes ressaltou que "a gravidade da situação vivenciada exige a tomada de medidas coordenadas e voltadas ao bem comum, sempre respeitada a competência constitucional de cada ente da Federação para atuar, dentro de sua área territorial e com vistas a resguardar sua necessária autonomia para assim proceder." Assim, ressaltou que a competência do Município não o autoriza a editar normas que contrariem a estadual, quando esta foi editada dentro de seu específico interesse. Numa certa hierarquização - o que não deveria ocorrer - consigna que o decreto municipal não "respeitou" o comando estadual.

Aqui é bom ressaltar que a regra da competência concorrente refere-se à atuação legislativa (Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Congresso Nacional). Do ponto de vista da atuação administrativa, a competência é comum. Mas claro que, considerando o caráter normativo do decreto, este deve seguir aquela, já que sua principal função é regulamentá-la; sem prejuízo de, em casos concretos, o decreto explicitar necessidade local que suplemente legislação de outra esfera.

Portanto, como visto, o Supremo tem utilizado os preceitos e parâmetros teóricos apontados, no sentido de reconhecer a possibilidade de ação de todos os entes federados, sem hierarquia entre eles, e com a verificação da predominância do interesse consoante as circunstâncias de fato (no caso, dados científicos).

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