No Constitucionalismo
de uma República Federativa, para que o poder não se enfastie de engolir o próprio
poder, é traçada toda uma série de limites e de atribuições: as competências.
Triste do país no qual se alimente a fragilidade política e institucional. Pois
essas competências representam o desenho de legitimidade dos órgãos
republicanos.
Ela determina que a
União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal devem “zelar pela guarda
da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o
patrimônio público” (artigo 23, I). Esse é o mandamento republicano
básico. Para isso, organiza o Estado em
conjuntos de órgãos e funções denominados Poderes: Executivo, Legislativo e
Judiciário. São várias estruturas e repartições organizadas legalmente, cada
uma com uma atribuição própria, conforme decidiu soberanamente o constituinte
de 1988. Para isso ela dedicou um título
inteiro (IV) à organização dos poderes. Para assegurar seu perfeito inter-relacionamento,
tornou próximo delas as Funções Essenciais à Justiça (capítulo IV do Título da
Organização dos Poderes). Essas funções são a Advocacia, a Advocacia Pública, a
Defensoria Pública e o Ministério Público; o que lhes confere o papel de essenciais
à atividade judicial. E, particularmente, duas (Defensoria e Ministério
Público) são chamadas de “permanentes”.
A Constituição de
1988, mirada de uma perspectiva histórica, encerra juridicamente o período ditatorial
anterior, conduzido por agentes militares. E, sob essa perspectiva, sua
estruturação, inovações e modificações trouxeram reações ao regime
constitucional então vigente. Notadamente, ela revela preocupações com a
delimitação dos poderes, restrição a exceções, estabelecimento de órgãos e
mecanismos de controle, busca de um caráter normativo, proteção de direitos
fundamentais, publicidade, moralidade e impessoalidade. Por isso, ela foi construída de modo a afastar
os elementos que permitiam os equívocos do período imediatamente anterior, até
mais do que promover transformações sociais mais profundas na forma de se
exercer o poder, nas instituições e na estrutura econômica e social; ainda que
tenha legado importantes delineamentos nesta matéria, os quais até hoje ainda
buscam vias de efetivação.
Por isso, houve uma ampliação dos dispositivos que tratam das Forças Armadas, sobretudo no que se refere à regulação dos recursos humanos. Sua existência é uma opção constitucional e também é chamada de “permanente” (artigo 142).
A palavra permanente,
sistematicamente interpretada, apresenta duplo sentido no texto constitucional:
um, de oposto ao que é transitório, provisório ou juridicamente precário (como
quando fala em “vínculo empregatício permanente”, 7º, XXXIV; “emprego público
civil permanente”, 142, § 3º, II), outro, como forma redacional de ressaltar
seu caráter constitucional a salvo de alterações legislativas, regimentais ou
administrativas (tal qual a Comissão Mista Permanente de Orçamento do Congresso
Nacional, no artigo 166, § 1º).
No primeiro sentido, há
dois subtipos: qualificação jurídica (por exemplo, atos diferenciados pela
admissão de pessoal em caráter não precário, a posse permanente de suas terras
pelos indígenas – artigo 231, §§ 1º e 2º - ou a residência do nacional português
em solo brasileiro para fins de igualdade de direitos – artigo 12, § 1º) e
também o sentido de constância, a salvo da discricionariedade governamental (como o reajuste dos benefícios previdenciários no
artigo 201, § 4º, para assegurar “em caráter permanente, o valor real”, a
defesa permanente contra calamidades - artigo 21, XVIII - ou a política pública
permanente de cultura do 216-A, caput). Já no segundo tipo, é possível
divisar dois outros subtipos: um de fixação de garantias institucionais a
sistemas de controle (como a já mencionada comissão parlamentar mista federal)
e outro destinado a promover a eficácia negativa de instituições consideradas
relevantes pela Carta Magna. Neste último campo, com o caráter permanente, é
reconhecida a sua importância para a proteção dos objetivos da República (que
estão delineados em seu artigo 3º). Daí decorre três níveis eficaciais: não
podem ser suprimidas, não podem ter funcionamento eventual e devem ser
aprofundadas e aperfeiçoadas.
É neste subtipo que encontramos,
além das instituições já citadas, as polícias federal, rodoviária federal e ferroviária
federal (artigo 144, §§ 1º a 3º); todas consideradas “permanentes”. Todavia,
dado o caráter de estarem previstas em um texto constitucional, esse
significado não é exclusivo delas mas, considerando o já mencionado artigo 23, I, pertencem a todas as funções públicas mencionadas constitucionalmente. Portanto,
sua inclusão ora se deu por repetição de textos anteriores ou por estratégia
retórica contra retrocessos. Mas isso não altera o seu nível de proteção
constitucional em relação a outros órgãos que também gozam desse status.
Nenhuma dessas funções
está a salvo de alteração por via de emenda constitucional (artigo 60, § 4º).
Nem mesmo como princípio constitucional sensível que legitime intervenção
federal (artigo 34, VII). O que faz com que, até este momento, o agente público
militar ou os órgãos que ele integra não constituam categoria à parte na organização
dos Poderes da República Federativa do Brasil.
Enfim, encontramos na Constituição três temas de destaque sobre como são tratadas as Forças Armadas:
- Submetidas ao comando supremo do Presidente da República (artigo 84, XII, c/c 142, caput) e regulado o seu papel e os direitos de seus integrantes (142 e seguintes)
- Estabelecimento de uma Justiça Militar (artigo 122)
- A Emenda Constitucional nº 23, de 1999, converteu os Ministérios Militares no Ministério de Estado da Defesa. Todavia, manteve os privilégios pessoais dos comandantes das Forças Armadas, sobretudo no que diz respeito ao foro por prerrogativa de função
Portanto, são
instituições que, nos termos constitucionais vigentes, tem previsão como
mecanismo de defesa da democracia – tal qual os demais órgãos já mencionados – e
recebem a influência do regime presidencialista. E, acumulando as funções de chefe
de Estado e de Governo, o papel do Presidente influencia a compreensão do dever
das Forças Armadas, por ser seu Comandante Supremo. Assim, o que este não pode, aquelas
também não podem. O Presidente tem o dever de “manter, defender e cumprir a
Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro,
sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil” (artigo 78, caput).
Isso quer dizer que, numa República Federativa, sobreleva o respeito do Presidente aos limites das atribuições fixadas pelo Poder Constituinte, ao que cabe ao legislador regular e à integridade institucional.
As Forças Armadas são órgãos vinculados a um
Ministério de estatura civil (portanto, sem os requisitos de hierarquia), naturalmente
em caráter auxiliar ao Presidente (84, II), e que não gozam da estatura constitucional
de Poderes nem de Funções Essenciais à Justiça – pelo que não se prestam institucionalmente
a dirimir conflitos entre poderes ou servir de órgão de governo. Seu emprego
está regulado na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, e não pode haver
interpretação que destoe desses preceitos constitucionais. Em suma, cuidar da defesa nacional, proteger os poderes e, subsidiariamente, cuidar da lei e da ordem pública.
Vinculadas a
um Ministério, as Forças Armadas se constituem em órgão de Estado e os agentes
públicos militares que a integram não gozam de preferência constitucional para
ocupar cargos públicos de livre nomeação. Sua profissão não lhes confere caráter
diferenciado em relação a outros trabalhadores braçais e intelectuais da
sociedade. Todavia, cabe observar o tratamento constitucional desigualador em
termos de direitos fundamentais, mais restritos, razão pela qual se submetem a
toda uma gama própria de direitos e deveres.
O regime de separação
orgânica das funções estatais brasileiro apresenta dificuldades práticas e
teóricas. Contudo, não há dúvidas de que as Forças Armadas não constam como
mecanismo de solução de conflitos ente os poderes. Antes, são um órgão de
Estado que não se prestam a interferir em tais atos, sobretudo, em opções governamentais
– quiçá contrariadas – do Chefe do Executivo; as quais então seriam
inconstitucionais.
Donde a atuação de uma
auxiliar do Presidente que, a despeito de não se tratar de manifestação acerca
de assunto inerente à pasta, implique em agressão a outro Poder, dever ser
entendida como ato do Executivo que atrai solidariamente a responsabilidade do
Presidente da República . Cabe ao Presidente impedir ou revogar tais espécies
de atos. As Forças Armadas não possuem existência política autônoma para além
de suas atribuições próprias.
Nesse sentido e com
esse espírito podem ser mencionados o Parecer de 3 de junho de 2020 da
Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados e a medida liminar proferida
pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.457,
em 12 de junho seguinte, no qual ficou clara a impossibilidade de uso das Forças Armadas pelo Executivo contra
os demais poderes ou sua iniciativa própria de, pela ameaça ou uso da força,
opor-se a atos dos poderes. Esses pronunciamentos oficiais foram decorrência do
iminente intento presidencial de encerrar o funcionamento regular do Supremo
Tribunal Federal, conforme o que foi dito em reportagens ou seus atos e
pronunciamentos deram a entender pelo contexto antidemocrático em que se deram.
Passadas mais de três
décadas desde o advento da Constituição de 1988, o que se vê é que a sua
semântica ainda não foi devidamente apreendida por setores da sociedade e do
Poder Público. A continuidade das relações de poder, como uma anistia
hermenêutica, faz esquecer também o que há de novo.
E neste momento,
mediante uma nota do Ministério da Defesa que se opõe a críticas do Senado
Federal – assumindo-as como genéricas e demonstrando parcialidade governamental
– a responsabilidade de seu comandante supremo por esse gravíssimo ato emerge.
Tais críticas, motivadas pelo teor dos depoimentos e contexto investigatório, acerca do
nefando crime de corrupção sobre pandemia sanitária, ocorrem no âmbito de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito, que é um instrumento garantido à oposição
político-partidária.
A garantia da voz do
povo brasileiro e de sua liberdade é um Parlamento funcionando regularmente e a
servir como espaço de debates e contraposições. Sobretudo, o Senado que, por suas
atribuições, é uma casa legislativa que desempenha papel institucional de
moderação entre o Executivo e a Câmara dos Deputados. O artigo 50 da
Constituição confere à Comissão o poder de convocar o Ministro da Defesa para
prestar pessoalmente informações, sob pena de crime de responsabilidade. Pois esse documento considera as críticas a profissionais militares mencionados
nas investigações como ataques à instituição e que isso seria uma ofensa à
democracia e à liberdade. Ao mesmo tempo, os signatários atribuem a si a responsabilidade
pela estabilidade do país. Assim, como não são eleitos, não tem proeminência
sobre os Poderes, não arbitram os conflitos e não estão acima da lei, não podem
desmerecer a atuação do Legislativo; com cuja defesa também são comprometidos.
Atuações como essas se afastam da relevante missão de Estado conferida pela Constituição de 1988 às Forças
Armadas.
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