DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS DAS CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS SOBRE ENERGIA NUCLEAR
garantia constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado
Fonte: Eletrobrás Eletronuclear, Usina de Angra 2 |
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional
da UFRN
Procurador Federal
“A política e a economia tendem a culpar-se reciprocamente
a respeito da pobreza e da degradação ambiental”
(Papa Francisco, Laudato Si, n. 198)
A distinção entre direitos fundamentais e garantias de direitos é um trunfo da publicística. Não basta o direito, é necessário que a ele possa se antepor uma garantia para assegurar a sua transformação em realidade. Pois, não basta às finalidades do Direito o discurso burocrático e sujeito a servir de ingrediente demagógico; ele deve ser uma antecipação da realidade. Sobretudo, ter direito é ter uma esperança - para usar uma expressão mais simples de se dar a conhecer.
As autoridades constituídas são sujeitas à Constituição, não lhe antecedem. Por isso, nós conseguimos distinguir a soberania no povo como um todo e não nos que são eleitos, ver que há direitos que o legislador não pode decidir que muda e condutas que o Executivo não pode adotar. Se não fosse assim, as leis poderia pôr fim às eleições, o Executivo recusar a dar aposentadorias e o juiz recusar-se a decidir questões. Portanto, ter uma Constituição é ter um certo sistema de limites ao poder.
Os direitos fundamentais são um dos marcos especialmente importantes desse ajuste de fronteiras entre os interesses de um país: o que o Estado é obrigado a fazer pelo povo. A Constituição declara esses direitos e estabelece garantias que os asseguram. É assim que o artigo 5º, inciso XI, da Constituição, diz que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” (direito), “ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador” (garantia), tal como nos ensinou pioneiramente Ruy Barbosa (A Constituição e os Actos Inconstitucionaes, 1893, p. 194-5).
A relação entre a norma jurídica primária que estabelece declarativamente um direito e a secundária que lhe segue e estabelece uma sanção punitiva pela sua não observância (Vilanova, Causalidade e Relação no Direito, p. 175) é típica de um modelo de Estado voltado a uma preocupação estruturante e direcionada ao indivíduo e sua liberdade. Esse é um padrão marcadamente protetivo e repressivo, no qual é mais acentuada a característica de manter as relações sociais estabilizadas do que promover transformações em seu modo de ser (Bobbio, Da estrutura à função, p. 6). Contudo, houve a mudança de perspectiva para um modelo promocional, no qual é insuficiente reconhecer a igualdade perante a lei e a importância de tratar desigualmente os desiguais. É essencial também ir além e promover transformações para que a igualdade no exercício de direitos sejam a regra (cf. Pinto, Princípio da igualdade, p. 56). Isso exige compreender melhor as garantias como protetoras de instituições, de estruturas e padrões estabelecidos com o objetivo de permitir o pluralismo, a qualidade de vida, os limites ao poder e o desenvolvimento de seu projeto político-social. As garantias institucionais não se confundem com garantias diretamente relacionadas a um específico direito que alguém tenha, mas com as próprias condições para exercer aquele direito (Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 544; Schmitt, Teoría de la Constitución, p. 175).
Quando a Constituição de 1988 proclamou a todo o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” com a obrigação do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo, fez uma proclamação de um direito. Fundamental por atender a uma necessidade social básica, anteceder o próprio raciocínio sobre o Estado e representar capacidades centrais do indivíduo como vida, saúde e relacionamento com outros seres e a natureza (Nussbaum, Creating Capabilities, p. 33-4). Ele encontra garantias de diversos graus por toda a Constituição, direta ou indiretamente. Um exemplo é a garantia de estudo prévio de impacto ambiental para “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente” (art. 225, § 1º, IV).
Ao decidir, em sucessivos pedidos (ADI 4973, 6897, 6898, 6902, 6908, 6910, 6933) pela inconstitucionalidade de normas restritivas à construção de usinas nucleares e armazenamento de lixo atômico, o Supremo Tribunal Federal incorreu na dificuldade em identificar a diferença entre direitos e garantias. Os casos indicados são referentes às Constituições Estaduais dos Estados de Sergipe, Rio de Janeiro, Paraná, Amapá, Pará e Pernambuco. Houve oportunidade voto vista do Ministro Edson Fachin entendendo pela competência em razão dos temas saúde e meio ambiente.
Ocorre que o debate transcorreu na seara de uma importante garantia, a Federação, que serve como relevante limite ao poder. Nesse campo, o objetivo é identificar a regra orgânica que distribui as competências para fazer normas sobre o assunto. E, sendo assim, a Constituição é clara em muitos dispositivos de que cabe à União exercer a atividade nuclear e seu controle (21, XXIII). Ela é que legisla sobre “atividades nucleares de qualquer natureza” (22, XXVI). Então, o STF entendeu que o Estado não poderia, mesmo em sua Constituição (já que decorre da federal), pretender regular o tema. Em sendo assim, o interesse dos Estados deve ser defendido por seus representantes no Congresso Nacional, além de outras instâncias técnicas e políticas.
Mas, no caso, não se está a tratar de um tema de definição federativa. A competência da União não estava em jogo (a política nacional de energia nuclear contida na Lei nº 4.118, de 27 de agosto de 1962, não seria impactada pois se refere ao monopólio e à Comissão Nacional de Energia Nuclear). Sim, uma ampliação da proteção ao meio ambiente e à qualidade de vida contra danos possíveis e registrados na história da humanidade; trata-se do princípio da precaução. “O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente” (Laudato Si, n. 190) e há uma profunda interligação entre qualidade de vida, meio ambiente, trabalho, economia e política de modo que não há soluções que alcancem resultados isoladamente.
Tratavam-se de normas restritivas, condicionantes ao exercício da atividade no Estado, não a usurpar as possíveis regras acerca de fiscalização de insumos, procedimentos licitatórios, comercialização e outros elementos. Por exemplo, a norma paranaense impugnada na ADI 6898 (artigo 207, § 1º, XVI, da Constituição Estadual) determinava caber ao Executivo estadual “monitorar atividades utilizadoras de tecnologia nuclear em quaisquer de suas formas, controlando o uso, armazenagem, transporte e destinação de resíduos, garantindo medidas de proteção às populações envolvidas”. Isso está de acordo com uma atuação coordenada dos entes estatais (prevista pelo artigo 23, parágrafo único da Constituição Federal) e não impacta na atuação legislativa da União ou no direito à exploração por esta da energia nuclear. Já no caso pernambucano (ADIs 6987 e 6933), o artigo 216 da Constituição Estadual vedava a instalação de usinas no território “enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica e oriunda de outras fontes.”
A vinculação entre a energia nuclear, a saúde e o meio ambiente é patente. Por isso, é decisivo observar que é exatamente no capítulo constitucional federal relativo ao meio ambiente que o tema é definitivamente regulado em âmbito maior. O § 6º do artigo 225 diz que as usinas nucleares “deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.” Ou seja, ele não é um direito da União, mas uma garantia do direito ao meio ambiente.
Fosse um direito, seria o direito à livre definição dos modais energéticos dentro da estrutura federativa. Contudo, no caso da energia nuclear, isso ficou expressamente tratado no que diz respeito ao meio ambiente. E, para maior proteção, foi retirada a definição de locais meramente do debate local e transferido para o plano federal. Mas, atenção, isso se dá dentro do capítulo do meio ambiente. Ou seja, foi feito para ampliar a proteção do mesmo. Deixaria de ser assecuratório se fosse interpretado de forma a prejudica-lo.
A garantia tem a sua existência vinculada ao direito ou instituição que protege. No caso do meio ambiente, ele tanto é direito como instituição. Aqui, não se trata de um direito exercido por uma pessoa em particular, mas de uma forma própria de instituição: a natureza “essencial à sadia qualidade de vida” (artigo 225, caput). Se fosse vinculada ao direito, dependeria da existência dele para poder ser acionada. No caso de uma instituição, tem a função de assegurar a sua existência e seria uma fraude inaceitável ser interpretada de modo a alimentar interesses contrários ao bem que protege. Seria uma simulação, tão vedada, por exemplo, no Código Civil (artigo 167), por conter declaração falsa e confeririam um tratamento diverso ao que realmente se estabelece, além de violar a boa-fé. Seria algo inaceitável na esfera da ética privada; e também o será no plano da ética pública. Salvo se fosse acionada a afirmação do Barbeiro Porfírio no Alienista de Machado de Assis, quando, em proveito de seus interesses pessoais e em antirrepublicana negociação, contemporiza que o povo “pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente”. A limitação de poderes exposta no início não permite essa interpretação, que tem como único desaguadouro a defesa e encastelamento de patrimonialismos e benefícios pessoais em detrimento da coletividade, ao estabelecer como único fiel o interesse do governante.
Ao impor como requisito para a instalação de uma usina nuclear a definição de sua localização pela União, a Constituição não está aí a tratar de uma regra de competência (o que, em rigor, já estava dito no artigo 22 acima indicado), mas de colocar que a localização de uma usina deve atender, sobretudo a preocupação para com o meio ambiente em um debate com proteção qualificada (representantes de todos os estados em grande quantitativo). O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito e não pode ser violado pela instalação de uma usina (como o ingresso sem consentimento na casa de um particular, já citado alhures) sem o devido consentimento do povo.
E não perturba esse devido consentimento do povo o dar a atenção às regras legítimas da comunidade, que detém competência concorrente em matéria de saúde e meio ambiente (24, VI – “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição” - e XII – “defesa da saúde”). Portanto, a proteção que se acrescer está em consonância com o direito ao meio ambiente.
Dessa forma, o que se pode observar é que o direito em debate era o da proteção ao meio ambiente e não o da competência. E isso se obtém da leitura do artigo 225 da Constituição. Apenas as normas que desbordassem desse desiderato imediato deveriam ser tidas por inconstitucionais.
Examinado o caso sob o prisma da separação entre direitos e garantias, segue-se a análise do direito fundamental em si.
Hipoteticamente, há o desejo de se estabelecer uma usina nuclear em detrimento de uma norma local. Visto o que a Constituição diz, a divergência está em o Estado pretender estabelecer regras de proteção ao meio ambiente. O interesse em debate é a possibilidade de haver apenas uma única fonte normativa para a proteção ao meio ambiente no caso da energia nuclear. O direito fundamental é ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A função em debate é a sistêmica ou ambiental. Diz respeito à existência de mecanismos que atendam à sociedade como um todo (interesse público), o qual deve ser buscado sempre (função eficacial ou de desenvolvimento do direito). O nível de eficiência esperado nessas funções é o básico do ponto de vista da energia nuclear, pois ainda se debate a instância normativa do meio ambiente em relação à mesma e o planejamento para possível futura usina. Do ponto de vista do meio ambiente, cabe o uso das tecnologias e recursos disponíveis para afiançar ou não os riscos na implantação de uma usina e assim poder avaliar seus danos; da mesma forma, há o grau máximo de eficiência no que diz respeito ao monitoramento e proteção ao meio ambiente. Isso é exigível e, da mesma forma, a legislação básica já fora realizada, mas indevidamente retirada de validade pelo STF.
Não há excludente de eficiência que impeça esse grau máximo de eficiência da função sistêmica do meio ambiente ecologicamente equilibrado em tema de energia nuclear. Pois, o risco é previsível e preexiste à própria restrição à atividade nuclear, é grave pois pode ser excessivamente oneroso ao meio ambiente e a não instalação parece ser a única medida para evitar a existência dos riscos e dos resíduos da atividade atômica. Portanto, subsiste o dever do Poder Público em proteger o meio ambiente.
O detalhe é que é um debate de direito fundamental entre esferas do Poder Público (federal e estadual), portanto, não se atenta diretamente para um direito atingido por um ato e cujo grau de invasão da esfera do cidadão ou da sociedade será analisado. Mas ao se analisar uma instituição, já se pressupõe no debate que sua solução não pode ser de forma a prejudicar mais ainda a sociedade. Por isso, o exame sobre se deve-se ou não excluir a eficiência das regras de proteção ao meio ambiente assume um caráter tão importante.
Por isso, o Estado tem o direito a ser mantido no exercício de sua competência restritiva das atividades nucleares em atenção ao meio ambiente e à saúde, não pode ser proibido ou até obrigado a isso. Por outro lado, a União não pode impedir o exercício dessa faculdade, seja regulando infraconstitucionalmente de maneira diversa ou por adotar condutas que gerem essa dificuldade. Aliás, a União deve zelar por essa competência estadual (e Municipal) e deve promover meios dela ser melhor exercida. É direito do Estado que as normas estaduais sejam mantidas válidas.
Três observações finalizam esta análise. a) Essa característica decisória de tratar de um tema para impactar outro é espécie de retórica decisória comum de se observar em decisões judiciais produzidas alheias a um debate mas apenas tomadas pelo magistrado de instância superior e apresentadas em mesa de votação; decisões “líderes de torcida” parece ser um termo adequado por enfatizar o caráter de utilizar argumentos específicos para buscar mais convencimento do que debater a materialidade do resultado. b) Por outro lado, há uma constatação de persistência de um paradigma anterior às mudanças estruturais preconizadas pelo processo constituinte de 1986-1988, ao permanecer a perspectiva de aplicação objetiva de normas de organicidade, preferencialmente ao debate das normas que visam à transformação das relações sociais. c) E, por fim, fica clara uma concepção absolutista e exclusivista no desenho dos direitos. Eles teriam o sentido primordial de excluir outros titulares (distribuição de titularidade), quando hoje se trata mais de estabelecer espaços de ação. E uma visão absolutista de que todas as formas de ação (faculdades) estariam abrangidas numa única expressão (direito a algo). E há muito tempo as relações jurídicas já produzem várias formas de exercer e existir de cada direito.
Assim, fica claro que as normas constitucionais e leis estaduais que, em tema de energia nuclear, estabeleçam restrições locais ao exercício da atividade, diretamente relacionadas à proteção ao meio ambiente e à saúde da população são constitucionalmente válidas por não serem regulação geral da atividade econômica daí decorrente, própria à União.
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