Auguste Couder, Le serment du jeu de paume, 1848. Musée de la Révolution Française, Vizille. |
...
(Chico Buarque, Tom Jobim. Eu te amo)
A Constituição é um documento que vale por vários, pois tem muitos sentidos. Ela tem valor histórico, literário, político e jurídico; é um convite aberto. E poderia listar muitos outros, mas esses são suficientes para a reflexão abaixo. Recentemente, a data magna da República - afinal é seu verdadeiro aniversário, a promulgação constitucional no dia 5 de outubro de 1988, transcorreu sem maior repercussão pública, apesar das mensagens e atos institucionais; de reduzida repercussão.
A Constituição se confunde com a própria existência do Estado e, se a cidadania fosse uma religião, ela seria seu texto sagrado. É exagero ou ingenuidade difamá-la por ineficiente ou incapaz de impedir a ocorrência de desvarios autoritários. Em momentos de crise, o culpado é sempre o outro. E, quando a pantomima se sobrepõe à arte política fica fácil desviar a atenção para um culpado útil. Sim, é útil extirpar algo escrito por outrem para ter o direito de escrever o próprio texto.
Paulo Bonavides proclamara a Constituição elaborada em 1988 como "um salvo-conduto para o País sair do arbítrio". Um documento tíbio, entre forças e fraquezas, que se apresentou até mesmo como provisória, já que estabelecera prazo para que o povo exercitasse uma decisão política fundamental sobre a forma de Estado. Segundo ele, após lograr a transição de um regime discricionário para um documento inegavelmente democrático, que "soube congregar o povo e ouvir-lhe a palavra", essa Constituinte Congressual agora enfrentaria, dentre outros desafios, o de transitar "do governo de um Poder para o governo dos três Poderes" (em A Carta de 1988 e o começo da segunda transição).
Hoje, passados 32 anos daquele alvissareiro 5 de outubro, temos o distanciamento necessário para refletir sobre isso. Será que conseguimos transitar para esse governo de três poderes? Como ficou a parte do trabalho de elaborar as leis ordinárias e complementares reclamadas pela Constituição? O unitarismo, que de tendência histórica convertera-se em regra, cedeu, finalmente, espaço ao decantado Federalismo?
A Constituição não tem vida própria. É um texto. Muitos dizem ser um pacto político, mas em diversos temas sensíveis, não houve pacto, diálogo real, senão continuidade de sistemas sob novas regras. A sociedade que amanheceu em 6 de outubro era a mesma da véspera. Algumas mudanças, como as referentes ao espectro político-partidário, demoraram para se fazer sentir nos centros de poder; outras, como a questão agrária, permanecem inauditas; enquanto perdões de dívidas foram feitos de imediato.
Mas ela é um registro, um ato no mínimo notarial, no qual se define um compromisso para com o futuro da gestão da República. As regras existem quando sentidas ou praticadas. Por isso, o acordo precede a sua assinatura. O aludido pacto é um acordo ou ditado de regras a serem observadas por si ou outrem. Não é um ato escrito, mas um encontro de vontades.
Chamamos Constituição a esse registro fundamental e também a essa observância de regras. Mas o que se quer ou que se tem a fazer está nas pessoas. Sua grande diferença é que a legitimidade da elaboração confere-lhe o privilégio de seu texto poder ser utilizado argumentativamente em diálogos institucionais sem que se lhe possa opor conhecimento ou negar-lhe validade. Isso faz parte do acordo. Contudo, para haver diálogo, é preciso haver atores, é preciso haver sujeitos constitucionais que reivindiquem sua participação e o que foi decidido. A personagem deve entrar em cena e dizer suas falas. Ainda temos que construir a República!
Em tempos já passados de predomínio da veiculação impressa, o artigo 64 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias chegou mesmo a prever em 1988 que seria promovida a "edição popular do texto integral da Constituição" para que "cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil." Hoje, aproximadamente 75% da população tem acesso à rede mundial de computadores (IBGE). Portanto, mesmo com a facilidade eletrônica, ainda não "chegamos lá": cada cidadão brasileiro.
Mas, como não basta ter acesso, é preciso saber ler e compreender, foi afirmado o direito à educação (artigo 205). E, para assegurar o acesso, foi desdobrada - da Advocacia e do extinto Ministério Público pré-88 - a Defensoria Pública, que prestará assistência jurídica integral aos necessitados, ou seja, integrará a pessoa ao diálogo jurídico; pelo que essa Função Essencial à Justiça é a garantia final da existência constitucional, não outro órgão (artigo 5º, LXXIV, e 134). A Constituição existe e é eficaz quando fundamenta processos comunicacionais para alterações de comportamento (=norma jurídica) ou quando a população a sente e exige; não quando há uma Constituição "para o povo", imposta por instâncias decisórias do Estado.
Portanto, o que se vê é que, ao longo dos anos, houve uma alternância de atores, de setores econômicos e de grupos políticos no exercício do poder. Ao mesmo tempo, houve uma compreensão mais clara dos interesses que estimulam ou desestimulam a edição dos atos normativos, de forma que as leis ainda não editadas passaram a ser objeto de debate franco pelos setores organizados da sociedade de maneira a se esperar menos "paternalismo" estatal. Aproximadamente 100 "nos-termos-da-lei" ainda estão em aberto.
Por outro lado, a crise econômica e, atualmente, a sanitária, levaram à descoberta de voz por parte de Poderes e entes federados. A crise de legitimidade no Legislativo e a carência de estadistas conduziu a uma maior deflagração na disputa pelos vácuos de poder. E os ocupantes dos cargos, para fazerem valer sua autoridade constitucional, buscaram os dispositivos da Constituição para escorar seus atos.
Segundo Friedrich Müller, a grande virtude da Constituição de 1988 é ter conseguido ser usada como argumento. Sua existência é reconhecida pelos poderes públicos.
A hipertrofia do Executivo continua a ser um problema cada vez mais confrontado. A estabilidade do sistema eleitoral, por um lado, e as expectativas dos eleitores e dos eleitos , por outro, comprova que todos acreditam na existência da função em parâmetros ainda monárquicos. O plebiscito de 1993 não resolveu isso.
Por outro lado, a tentativa de descentralizar o poder com Estados continua a não surtir efeitos. A autonomia concedida ao Município - em que pese as justificadas críticas que recebe em razão da dificuldade de controle externo (são 5570 entes da República nessa categoria) - pode ser um fator mais real a fazer com que o povo se sinta protagonista do poder. Nessas três décadas não houve avanço em relação à construção das Regiões como instância política. Antes, houve o seu descrédito.
O unitarismo ainda dita as regras. Apenas com a reforma administrativa da Emenda Constitucional nº 19/98 e a maior descentralização de atividades - ainda que não acompanhada de um redesenho do federalismo financeiro - passou-se a exigir a atuação de Estados e Municípios em estilo federativo (como nos consórcios, artigo 241).
Mas ainda há dificuldades em se fazer entender que a atuação paralela, cooperativa e em comum de Municípios, Estados, Distrito Federal e União, sem hierarquia e prevalência do mais abrangente sobre os demais, é a regra escrita desde 1988. Mais, ainda há a dificuldade para se entender que há uma separação das funções públicas e o poder não pode ser exercido para satisfazer interesses de um Poder com uso ou submissão da atuação de agentes do outro. Mas isso se dá publicamente e de modo aceito por muitos, numa subversão da ética pública.
Não é que as instituições - enquanto espaço de salvaguarda dos avanços democráticos - estejam frágeis. A verdade é que nossas garantias institucionais (Schmitt) sempre foram frágeis. A transição a que aludiu Paulo Bonavides é a construção dessas garantias de modo legítimo. Ao tempo da revisão constitucional (e da busca da tríade diretas-constituição-parlamentarismo), Roberto Campos falara na Dupla Travessia: para a democracia política e para a economia de mercado. Contudo, não são travessias, senão mudanças de fórmulas pela ausência do elemento finalístico humano como razão de ser dessas promessas. É uma promessa de expectativas, ou seja, promessas-promessas. E, ainda que o resultado possa não ser garantido, não ter bússola não ajuda a chegar ao destino. São valiosas, todavia, suas observações acerca das dificuldades geradas pelos modelos econômicos e pelas crises políticas para a construção de um modelo de legitimação popular que, de fato, dê estabilidade ao país para prosseguir sua jornada.
Enfim, é uma longa etapa de transição para a maturidade institucional, uma adolescência balzaquiana.
E, talvez, o principal passo seja aceitarmos que a Constituição contém dispositivos autoritários que aceitamos; normas que privilegiam o unitarismo e a prevalência do Executivo. Nós aceitamos interpretações que reduzem o alcance da democracia e da participação popular. Dispositivos são reformados para manter o poder de grupos políticos nacionais ou locais de maneira personalista.
Adoramos nos inebriar com redações republicanas e democráticas de alguns dispositivos como se fossem carros abre-alas de escola de samba, a ponto de esquecermos a crueza da estrutura que os move. A beleza não está presente em silêncios e em dispositivos que, analisados friamente, mantêm a lógica patrimonialista e permitem a troca espúria de interesses em corredores de tantos palácios. Não, ela não é bonita. Ela foi feita democraticamente, mas isso nem sempre se transmitiu ao texto ou a quem o executa. Ela é anti-discricionária, mas ainda é autoritária, porque quem a lê, lê autoritariamente, e quem a usa, usa autoritariamente. Não, não há beleza na sistemática construída, a sua teorização - o que lhe subjaz - não é tão bela quanto a Constituição que está nos manuais porque os juristas assim desejam.
Agora, precisamos de uma transição mais ampla, estrutural, dos pilares que suportam a democracia e a República.
Quando, em 1789, Luís XVI impediu a reunião dos Estados Gerais, os deputados do Terceiro Estado, mais alguns clérigos e nobres se reuniram num espaço dedicado ao jogo da palma, ou de pela (jeu de paume), ancestral de vários esportes como o tênis, a qual é próxima do Palácio e do Hôtel des Menus-Plaisirs, onde se davam as sessões para debater a crise no Reino. Lá, eles juraram não se separar e se manterem unidos onde as circunstâncias exigissem, até que fosse elaborada uma Constituições sobre sólidos fundamentos. Entre os protagonistas estava Emmanuel-Joseph Sieyès. Isso foi no dia 20 de junho e representa um dos momentos fundamentais da Revolução Francesa. Os deputados assim reunidos em Assembleia Nacional Constituinte se impõem ao Rei e em 14 julho se dá a tomada da Bastilha.
A Constituição é um convite a um processo democrático que tem de ser aceito. E, sim, esse germen se encontra nela e não há como ser retirado. Mas um convite aberto também é um convite a permanecer. Todavia, certas coisas precisam de um convite para sair.
A sociedade já está tão amalgamada com o processo de 1986/1988 que já não há mais início e fim objetivo dele. É preciso romper com modelos importados e construir a própria realidade institucional de maneira firme. Na desordem de nossas lembranças, há muitos entulhos enrolados uns com os outros. É tempo de começar a pôr ordem, de saber usar os mecanismos democráticos, de exigir pronunciamentos e discursos éticos e de saber que, sem construirmos relações republicanas e livres com o próximo, não construiremos nada, pois não há um reino de um só.
É chegada a hora de uma transição para a República.
Comentários
Postar um comentário