A Constitucionalização das Emoções, parte 3: o direito a ter medo


A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS EMOÇÕES:
o direito a ter medo

Olaus Magnus, 1572, National Library of Sweden


Este texto insere-se no contexto mais amplo do tema “Constitucionalização das emoções”, do qual é sua terceira parte, em um total de seis. As duas primeiras foram:


Uma incursao incidental no tema também foi feita em “sim, é grave”; que aborda o direito à esperança.

Neste, falaremos do “direito a ter medo”.


CONSTITUIÇÃO E MEDO

Fabiano Mendonça
Procurador Federal
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN

Não podemos dizer que não temos emoções. A indeclinabilidade de sua exteriorização é uma constante e o vetor das transformações sociais.

Apresentamos modelos de comportamento de acordo com o modo como elas se organizaram em nossa mente. E, para isso, contamos com influências genéticas, sociais e formativas. Quero deixar claro que não será parâmetro o embate entre ser “racional” ou “emocional”. Não é disto que se trata. Ninguém abre mão de ter conforto emocional e não é outra coisa que se busca em contratos, decisões judiciais, concursos públicos, sociedades com ou sem fins lucrativos, acordos, empregos e relações familiares. E todos estão tão satisfeitos com esse objetivo que não creio haver quem afirme buscar o desconforto emocional como objetivo final.

O jurista provavelmente conhece a palavra conforto com outro nome. Um nome não menos dotado de carga psicológica: segurança. A segurança jurídica é o vetor que move a própria concepção de normatividade social.

Antes que se ingressasse no debate acerca da diferença entre valores e princípios jurídicos, as emoções já permeiam todo o Direito. O antigo pecado capital do medo é uma deles. Por isso é preciso entender um pouco essa doença espiritual pelo seu conceito religioso.

Um pecado capital é algo que, mais do que um ato de desamor em si, é capaz de gerar outros atos moralmente negativos. Apenas a partir do seu reconhecimento é que pode ser entendido em toda a sua extensão. Se eu aceito a sua existência despercebida, talvez como algo necessário, ele continua a espalhar suas raízes.

Ele está presente no Direito. E se eu aceito isso de modo que não mereça maior atenção, ele se espalha de modo daninho e ameaça a presença de outras emoções. Aqui, detalhes importam (“já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito”; Mt 25, 23).

É o caso das grandes decisões, orientações e momentos da vida de uma pessoa ou sociedade. As grandes decisões são ações conformadas pela realidade que as envolvem. Elas são necessárias. Esperamos que alguém as adote.

Contudo, elas são o reflexo do que lhes é pedido ou então do que se deve fazer para alterar o que já é ordinário; ou seja, o meio em que estão. O entorno agravado é que exige e que caracteriza as “grandes decisões ou atitudes”. Mas o meio resulta de um conjunto incontável de pequenas decisões que não pediram muita reflexão, que se juntaram a outras tantas igualmente pensadas de modo limitado. E essas reflexões não se somam porque são em situações e sistemas isolados.

Malba Tahan (heterônimo de Julio César de Mello e Souza) relata a Lenda de Sissa, sobre a história do xadrez. O sábio pede de recompensa ao sultão grãos de trigo, contanto que, começando por um grão na primeira casa, essa quantidade seja dobrada a cada casa do tabuleiro… Num primeiro momento, aceita-se a oferta tendo-a por jocosa e simples. Mas logo os cálculos mostram que seriam preciso milênios para juntar a quantidade necessária. Assim são as decisões.

Em um dado momento, é preciso adotar uma mudança de rumo. Mas isso apenas é possível com o reconhecimento do que está por trás dos acontecimentos.

São Paulo fala da relação entre o que reside no pensamento humano e as prescrições normativas externas. Há uma simbiose na qual um depende do outro: “a lei é pecado? De modo algum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei.” (Rm 7, 7) Por mais favorável à convivência harmônica que seja a ordem jurídica, ela carrega em si as marcas emocionais que pretende dominar.

Mas só o próprio indivíduo pode dominar a si.

De que há medo?

O artigo 121 do Código Penal diz que temos medo da morte. Mas o Código também diz que temos receio também do roubo, da lesão corporal e tantos outros. Temos medo do outro e do que pode fazer conosco ou nosso patrimônio.

Temos medo da natureza: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior” (artigo 393 do Código Civil). Também há o contrato de seguro,

Temos medo do que não vemos ou tocamos: as quarentenas sanitárias. O Código Civil deixa claro que temos medo das oscilações econômicas: prevê a onerosidade excessiva (art. 478), a desproporção prestacional (317), a possibilidade de revisão contratual (421-A, III)

No divino temos confiança, mas ainda assim, há o receio da presença de símbolos religiosos e do ensino religioso, sob debate judicial. Só que esse é certamente mais um medo das pessoas do que do etéreo.

Como se vê, o medo está espalhado por nossa ordem jurídica. Será preciso aceitar que tem medo para ver isso? Sim, é. Temos o direito a ter medo? Sim, temos; tal qual visto nesse breve apanhado, o qual não tem a intenção de ser exaustivo.

A questão é que essa exacerbação do medo conduz à concepção do direito marcadamente pelo viés sancionador, policialesco, genderme e liberal. Quanto menos contato melhor, pois acarreta menos riscos.

No mesmo ímpeto, as teorias que privilegiam o Direito como coação e entendem a sanção como essencial ao debate, serão valorizadas. Elas não são de todo equivocadas. O equívoco está na identificação que o sujeito pensante faz com a essência da proposta. Ele, por se ver representado nela, finda por valorizar uma emoção de modo a anular outras perspectivas.

E quantas divergências judiciais não poderiam aqui ser contempladas nesse capítulo? Privilegiar a continuidade da detenção ou a progressão de regime dos que se encontram aprisionados? Impulsionar taxas para proteger o fornecedor de problemas de mercado? Responsabilizar o Estado por omissão de sua atuação?

Na medida em que se reduz a quantidade de opções possíveis, reduz-se, na verdade, a liberdade. É como a pessoa que se encarcera em casa com câmaras, cercas elétricas e portões, por medo do crime; sabemos que isso não é desejado. Mas é um medo, sim, e que limita as opções. Portanto, é preciso analisar se há de fato outra opção para que aprioristicamente já não sejam reduzidas as possibilidades de decisão jurídica.

O contrário imediato será o direito a ter confiança. Mas essa é a outra face do medo. Como saber e não saber, conhecer a si mesmo, legalidade e igualdade.

A confiança pode ser institucional. É o caso dos servidços de segurança pública e do voto, por exemplo. Este representa a confiança nos representantes eleitos e na democracia.

Há a confiança no outro: como na assunção de obrigações solidárias e na cooperação processual (CPC 6º).

Confiamos na sociedade quando a sociedade civil pode constituir organizações ou quando são chamados a oferecer bens e serviços para o interesse público em licitações.

Confiamos, enfim, na natureza. Por isso ela é protegida.

Mas esse é um viés. O problema é quando essa perspectiva demonstra sua tendência a dominar toda a ordem jurídico-constitucional e excluir as demais emoções. As críticas e ênfases que as teorias normativistas fazem, por exemplo, falam mais de seus receios do que de seus opositores.

A perspectiva de medo aí dominante se estabelece num julgamento contínuo e numa estrutura reducionista - mas paradoxalmente abrangente - que prega a prioridade do direito legislado (para não haver dúvidas quanto à fonte) e a vedação do non liquet. A dúvida não é permitida.

O procedimentalismo aí ganha força. A obediência a regras separa o bom do mau, o confiável do desleal. Chega-se ao extremo de se criar uma ação declaratória de constitucionalidade. O processo civil tem um acréscimo de procedimentos diferenciados regulados em lei. O contato é mediado e segundo regras.

A dúvida, o temor, impera. Mas, ao mesmo tempo e por isso mesmo, a regra é: não pode haver dúvida. Vale o texto claro. In claris cessat interpretatio.

Suprema ironia: no respeito ao texto escrito, a inquietude do espírito humano leva as dúvidas aos limites do debate sobre a pontuação!

Na interpretação constitucional, não há que se ter medo da dúvida. Ela é a sementeira das soluções e das mudanças de rumo. A tibieza da alma é o que deve ser combatido. Ela é que conduz ao julgamento apressado. E o medo de julgar é a verdadeira constante desse tipo de pensamento. Nada disso tem lugar na busca do desenvolvimento individual e social.


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