A constitucionalização das emoções, parte 6, tópico II: o direito à felicidade


É possível falar em um direito à felicidade?


Salvador Dalí, Figura en una ventana, 1925, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía


Por

Fabiano Mendonça

Professor Titular da UFRN
Procurador Federal


Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6.1

"O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar."
(Carlos Drummond de Andrade, O mundo é grande,
em "Amar se aprende amando")




É JUSTO SER FELIZ?

Carlos Drummond de Andrade dirá mais à frente, nos versos que servem de epígrafe a este texto ,que “o amor é grande, mas cabe no …. espaço de beijar”. A Felicidade é ampla, mas pode caber no Direito.
No momento em que escrevo este texto, a pesquisa pela expressão “direito à saúde” no popular mecanismo de buscas Google retorna 10.300.000 resultados em 0,39s. Num tempo infinitesimalmente menor (0,37s), a busca por “direito à felicidade” retorna apenas 92.600 resultados na rede mundial de computadores. Ou seja, 0,9% das ocorrências daquele. Arredondando, podemos dizer que, considerando esses parâmetros da procura pelos termos, para cada 1.000 pessoas que falam em direito à saúde, 9 falam em direito à felicidade.
Já “right to health” encontra 47.500.000 menções e “right to happiness”, 1.420.000. Isso apenas para mostrar um panorama para além do debate em língua portuguesa e com uma das expressões possíveis. A razão melhora: 2,99% (aproximadamente 30 pessoas falando da felicidade para cada 1000 a mencionar a saúde de algum modo vinculado ao Direito). 
Por mais que seja cediço atualmente que existe, sim, direito à saúde, creio que, ao se parar e pensar, ninguém em sã consciência busca isso hoje na Justiça. O que se deseja é a saúde em si. Mas será que não se busca a felicidade também? Em 1988 também não havia demandas por atendimento de saúde pública.
Falando sobre Felicidade, o que se propõe? Quais são as objeções possíveis?


O ENIGMA DA ESFINGE

"Que animal anda com quatro pernas pela manhã, duas ao meio-dia e três à tarde?"

O ser humano tem duas grandes fases (nasce duas vezes, segundo Boris Cyrulnik). Uma, é seu advento biológico ao mundo - nesta, esta incluído o nascimento, o desenvolvimento e a morte, com seus consectários de relação psicológica com o mundo - e noutra, uma dimensão diversa, na qual ele sai da inércia à altura do raciocínio. Édipo diz: "e fui eu, Édipo, que chegava sem nada saber, quem venceu a Esfinge pela agudeza do espírito e sem auxílio das aves dos augúrios."  (Sófocles, Édipo Rei) Eis a celebração de uma capacidade além da biológica e interna ao homem.
Neste mundo, ele lida com uma realidade virtual que não pode se despregar da primeira. Um mundo de jogos onde assinaturas e manifestações de vontade podem retornar em fortunas e ruínas, quitação ou ampliação de dívidas, privilégios ou deveres. Um mundo institucionalizado (Rawls, Searle) no qual papéis, moedas, gestos, toques em telas, tornam-se decisões e estratégias reais para a propriedade de bens ou direito a atos, o que significa o afastamento das intenções de outras pessoas sobre os mesmos objetos ou condutas.
Nada pode ser mais virtual do que o Direito. A raiva que leva alguém a cometer um crime contra outrem, por mais impalpável em sua essência, pode ser o estopim para uma pena. Elétrons advindos da movimentação ou degradação de forças da natureza podem ser comercializados com valores bem definidos em faturas mensais.
Tudo depende apenas de poder ser relacionado a algo sensível ao toque ou às emoções e, sobretudo, se puder ser tido como alvo de apreciação relacional; como coisa economicamente validável. Se puder servir como meio legitimador de interação entre as pessoas. A partir desse momento, deixa a esfera individual para ser uma exteriorização, para ser social.
Por que há dificuldade em se entender a felicidade nesse contexto? É certo que a visão das normas positivadas pelo Estado como algo tendente à melhor qualidade de vida (e não faltam dispositivos constitucionais tendentes a isso) mostra esse objetivo. Então, seria um debate desnecessário?
As normas já visam a proteger a vida humana e nem por isso se trata de dizer que não há o direito à vida. Qual o receio em se tratar de felicidade?
Afinal, prestações não são a objetos, são a condutas. E mesmo coisas incertas ou aleatórias podem ser alvo de negociação.
Em parte, é como o direito à saúde: em rigor, o ser humano deseja a saúde, não o direito respectivo; pois este pressupõe não ter aquela. Tendo uma, o outro não é necessário.
Mas o que dizer, em um mundo que valoriza pessoas felizes, do marketing à espiritualidade, sobre ser feliz? Parece que o anseio para logo se antepor ao debate do tema a impossibilidade de se prover a felicidade subjetiva faz esquecer as peculiaridades jurídicas. Parafraseando ironicamente Descartes parece que a felicidade é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dela, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-la mais do que a tem. Todos seríamos felizes por igual.
Mas essa parece não ser a realidade. Oitenta por cento da população mundial passa por alguma situação que prejudica sua saúde mental, o que impacta a economia mundial anualmente em um trilhão de dólares (https://www.who.int/mental_health/evidence/special_initiative_2019_2023/en/). Por isso, a Organização Mundial da Saúde lançou uma iniciativa em cuidados da saúde mental para oferecer acesso a cem milhões de pessoas até 2023. Após o início da pandemia do coronavírus, quase setenta por cento dos psiquiatras brasileiros relataram ter atendido novos pacientes e praticamente a metade dos profissionais percebeu o aumento da procura por seus serviços (https://www.abp.org.br/post/atendimentos-psiquiatricos-no-brasil-sofrem-impacto-da-pandemia-de-covid-19).
A saúde mental é apenas uma faceta da ideia mais ampla de felicidade. Ela recebe a dimensão jurídica por intermédio do direito à saúde - mesmo que de maneira ainda insuficientemente tratada - por força do que enuncia a Constituição da Organização Mundial da Saúde: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”
E já pela observação dessa dimensão da felicidade, vê-se que não deve haver motivos para temer a abordagem do tema. Não parece, portanto, ser ilícito dizer que é feliz ou que se deseja ser feliz. Aliás, na medida em que o livre desenvolvimento da personalidade permite, isso vai além da liberdade de expressão. Ou seria uma expressão artística. Porém, tal como as expressões culturais, a expressão pelo desejo de felicidade encerra em si o gérmen da materialização.
O direito não “toca” em coisas; as pessoas o fazem. O direito toca pessoas; contudo, faz isso na medida em que elas concordam em pôr algo como objeto de diálogo.
Há outras dimensões a serem consideradas no direito à felicidade, as quais promanam dessa consideração mais básica de que é justo querer ser feliz.

  
É POSSÍVEL FALAR EM UM DIREITO À FELICIDADE?

Há uma acepção primeira sobre o significado de ter um direito. Por ela, ter um direito significa poder adotar um comportamento aceito institucionalmente pela comunidade de modo a tolerar que o titular o faça. Pode ser uma ação ou uma inação: expressar-se, utilizar um bem, escolher etc. A comunidade, por suas instituições, assume que oferecerá os meios jurídicos para a conduta protegida e que adotará meios de defender esse exercício de interrupções indevidas.
Para além disso, há seu sentido científico, do qual aquele decorre: está de acordo com a Ciência do Direito o comportamento que proporciona progresso social e que atende à conservação individual e da espécie mediante a consideração de conhecimento generalizável e sentimento acerca do que deve ser, de modo a gerar aproximação no espaço-tempo social (Cláudio Souto).
Assim, as instituições podem ou não proteger algo (ter o “direito” a algo) de acordo ou não com o Direito.
E dentre as conclusões da Ciência do Direito está a de que devem ser promovidos os meios para que a conduta considerada apropriada seja aplicada em sociedade para que esta se beneficie de seus avanços científicos. Daí o recurso atual ao processo (não apenas o judicial, mas também ao legislativo e ao administrativo) em seu escopo social pedagógico (Cândido R. Dinamarco) para transformar as relações sociais.
Nesse contexto, é preciso identificar se a felicidade está de acordo com o Direito e se há proteção institucional à mesma. Se a resposta à primeira pergunta for verdadeira, então deve ser visto o meio para ser protegida institucionalmente,
Em primeiro lugar, o direito trata de relações entre as pessoas (Savigny), as quais são estabelecidas em razão de um dado-do-mundo. Esta realidade, por sua vez, é alcançada por condutas humanas, as quais são o objeto da relação jurídica. Exemplo: não se compra uma casa, paga-se para que alguém efetue a transferência legal do direito a exigir não ser importunado em determinado espaço físico, dentre outras faculdades. A casas, em si, não reage fisicamente à mera manifestação de vontade humana, assim como um carro não freia porque o dono viu o sinal vermelho; ele precisa obedecer ao comando jurídico aí ínsito que determina que se movimente de modo a diminuir a velocidade.
Então, é indispensável haver, em toda análise jurídica, uma conduta específica a ser tratada. Sem isso, não há o que proteger.
E o que se observa é que a árvore dos direitos fundamentais promana de dois valores básicos: vida e dignidade. A vida digna é o pressuposto de toda análise deôntica vinculada a objetivos de existência comunitária: obter proteção diante do clima, acesso a alimentos, práticas religiosas, segurança contra os riscos da natureza animal, comunicação, desenvolvimento pessoal e melhoria da saúde.
Não é possível discurso ou violação contrário a esses valores; são truísmos. A ordem jurídica tem a premissa de que há a necessidade de adequar condutas (dever ser) a determinados objetivos de convivência. Seria como debater como respirar sem ar.
Deles promanam suas feições jurídicas mais basilares e fundamentais: saúde e felicidade.
A felicidade é a feição jurídica da dignidade humana, é a sua primeira conformação normativa. É a inteireza do ser feita direito. É o direito a vir a ser.
Desse modo, atende à conservação da espécie, pois é sua própria continuidade, e do indivíduo (pois continua a ser mais profundamente). É verossímel que está de acordo com o sentimento acerca do que deve ser (não se pode crer no oposto, a generalização da ideia de que é dever ser infeliz, antes, isso gera cuidados para com a saúde mental). E tem lastro de que é palpável um estado psicológico de maior sentido de realização pessoal, de modo a dar sustento científico a isso.
Portanto, há um direito à felicidade: a não receber obstáculos em decisões referentes ao próprio desenvolvimento de sua personalidade.


FELICIDADE E DESENVOLVIMENTO

"Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez maior de técnicos, exige cada vez mais sábios, capazes de reflexão profunda, em busca de humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da contemplação. Assim poderá realizar-se em plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas."
[grifos inexistentes no original]
(Paulo VI, Populorum Progressio, n. 20)

O direito fundamental ao desenvolvimento é o direito ao amplo acesso não discriminatório às políticas públicas. A relação com a felicidade é imediata: aquele deriva desta.
Não basta estabelecer diretrizes ou vedar normas que contrariem o desenvolvimento pessoal ou coletivo, é preciso que as políticas públicas sejam encetadas de modo a proporcionar uma visão ampla do ser humano.
Deve ele poder desenvolver sem empecilhos sua: vida, saúde e integridade física, sentidos, imaginação e pensamento, emoções, razão prática, respeito a si, ao próximo e a outras espécies, lazer, participação políticas e condições materiais de vida (Martha C. Nussbaum).
E, pelo encadeamento normativo, pode-se dizer que a felicidade influencia-o, de modo que é a sua medida. Será tanto mais eficiente o desenvolvimento quanto mais conseguir elevar as condições de vida do cidadão. Nesse sentido, índices como o de Felicidade Interna Bruta (Butão) ou o Better Life Index (OCDE), são de grande valia, por equilibrarem o impacto das diversas políticas na construção de condições ideais de vida.


FELICIDADE E CULTURA

A Felicidade não se confunde então com o Direito à Cultura. Este separa-se do mesmo junto com o desenvolvimento.
A cultura é o direito mais basilar de sustentação da ordem jurídica.
Entendido como uma gramática viva que rege uma linguagem usada para relações entre pessoas, o Direito é uma teia que já está pronta antes do início e após o término da existência jurídica do titular de direitos. E, em todos os seus termos, representa uma cultura jurídica.
E todos têm o direito a participar dessa cultura. O que vale dizer, a ter direitos e obrigações consoante a mesma, a não manipular a seu favor nem ser manipulado com o uso dela; a ser incluído.
Isso fica claro quando a Constituição afirma que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (artigo 215). Isso vai além dos bens de valor cultural. E estabelece que constitui patrimônio cultural imaterial os bens referentes à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver (artigo 216).
O modo como se vive é um exercício cultural. A cultura não existe para ser engavetada. A cultura só existe expressada. O Direito só existe se vivido.
O pleno exercício dos direitos à cultura jurídica de um povo é um direito fundamental. E ela se manifesta no modo como a sociedade historicamente compreendeu e registrou normativamente seu entendimento sobre deveres, compromissos, sucessões, família, propriedade e assim por diante.


FELICIDADE E LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

Dessa maneira, o livre desenvolvimento da personalidade pode ser entendido como um predicado lógico, como uma consequência do direito à felicidade: permite-se o livre desenvolvimento da personalidade.
Contudo, em decorrência do valor vida, este também impregna o direito à saúde, do qual decorrerá toda uma série de direitos fundamentais tendentes à conservação da integridade (trabalho remunerado, moradia, propriedade, liberdade de locomoção, dentre outros).
Por isso, é mais crível vê-lo como um exercício de liberdade de desenvolvimento, do que como uma hipótese normativa.



JUDICIÁRIO, CONSTITUIÇÕES, DOCUMENTOS E GOVERNOS

Que os sentimentos são passíveis de serem levados ao Plenário da Alta Corte e que reclamam para não serem reprimidos é provado pela emblemática intervenção, no curso do julgamento da ADI 5394, de que havia um "mau sentimento”, “mistura do mal com atraso” e “psicopatia”. Isso mostra um espaço para debate do tema da Felicidade e quais os limites desse direito de vir a ser o que se é.
A constitucionalização da felicidade pode ser vista com o uso de outras palavras que denotam essa emoção:
“Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal [proteção à população indígena] são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. [...] Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica.” (Pet 3388, Relator(a): CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212-01 PP-00049)
“Constitucionalismo fraternal. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas.” (ADI 4277, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219-01 PP-00212)
O preâmbulo da Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão (1789) já concluía com o objetivo maior de construir a felicidade geral (bonheur de tous). E, antes disso, a Declaração de Independência Norte-Americana (1776) consagra os direitos naturais inalienáveis da vida, liberdade e busca da felicidade.
No leste asiático, o artigo 13 da Constituição japonesa é bem claro: “todas as pessoas deverão ser respeitadas como indivíduos. O direito à vida, liberdade, a busca pela felicidade, contanto que não interfira ao bem-estar público comum, serão de suprema consideração na legislação e em outras instâncias governamentais.” Igualmente importante por sua dicção é o artigo 10 da Constituição da Coréia do Sul: “All citizens shall be assured of human dignity and worth  and have the right to pursue happiness. It shall be the duty of the State to confirm and guarantee the fundamental and inviolable human rights of individuals.” Esse compromisso estatal fica claro em diversos pontos da Constituição do Butão, mas particularmente em seu artigo 20: “The Government shall protect and strengthen the sovereignty of the Kingdom, provide good governance, and ensure peace, security, well-being and happiness of the people.”

Na América Latina, sobressai a Constituição Equatoriana, a qual prevê uma sociedade que integra a pluralidade cultural, busca a harmonia com a natureza e objetivos diversos do simples crescimento econômico. Tais dispositivos recebem o nome de direitos do bem viver (artigos 12 e seguintes; água, alimentação, meio ambiente, comunicação, cultura, educação, moradia, saúde, trabalho e seguridade social) e seu regime é largamente tratado no texto constitucional. Nela, a natureza apresenta direitos próprios à existência e a seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos (artigo 71). Merece ainda destaque a previsão de que as políticas públicas buscarão tornar efetivos o bem viver e todos os direitos, e serão guiados pelo princípio da solidariedade (artigo 85, 1) e de que, no desenvolvimento, o bem viver exige que todos gozem efetivamente de seus direitos, e sejam responsáveis de acordo com a interculturalidade, o respeito a suas diversidades e a convivência harmônica com a natureza (artigo 275).

Já a Constituição da Bolívia (Estado Plurinacional da Bolívia) adota como princípio do Estado o valor indígena do Bem Viver (artigo 8º, I). E, na Constituição Brasileira, merecem destaque os seguintes dispositivos:

"Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais."
"Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."
Outrossim, adiante é visto o impacto da ideia de Felicidade sobre o artigo 3º da Constituição. Tratado dessa maneira, como uma emoção de base que sintetiza a Teoria Constitucional, oferece um contributo integral de humanidade à hermenêutica jurídica ao ser visto também como direito.

A par disso, há iniciativas governamentais em outros países, como o do Conselho Econômico, Social e Ambiental francês, que busca análises que substituam o Produto Interno Bruto (PIB) como índice que paute as políticas públicas. Ou, de um ponto de vista mais subjetivo, o Ministério da Solidão, na Inglaterra. Os Emirados Árabes Unidos criaram o Programa Nacional de Felicidade e Bem-Estar (https://www.hw.gov.ae/) com o objetivo de ser um dos cinco primeiros países no índice de felicidade até 2021, com a criação de protocolos de atuação, conselhos, adoção de medidas governamentais e estímulo a iniciativas privadas. Os parâmetros são o dos experts do Global Happiness Council (http://www.happinesscouncil.org/).
Na Resolução da Assembleia Geral nº 065/309, de 19 de julho de 2011, as Nações Unidas estimularam “os Estados Membros a empreenderem a elaboração de novos índices que reflitam melhor a importância da busca da felicidade e do bem-estar no desenvolvimento de forma a orientar suas políticas públicas.” 
Nada mais adequado para o desenvolvimento que segue a felicidade.


PERSPECTIVAS

O direito ao desenvolvimento, conforme a política seja exigível em sentido fraco (planejamento), médio (implementação) ou forte (resultados) instrumentaliza uma específica proteção judicial, que pode ser coletiva ou individual. Tudo isso advém da noção jurídica de Felicidade.
Enquanto emoção constitucionalizada, a Felicidade serve para integrar os outros domínios: medo, vergonha e raiva. Qualquer um destes, tomados como emoções únicas da ordem jurídica produzem regimes que dificultam a individualidade: pelo excesso, pela permissividade ou pela tirania.
A Felicidade é a medida, enquanto direito e princípio, que permite compatibilizar essas dinâmicas por estabelecer um norte de desenvolvimento humano.
Ela é relacional e serve, enquanto direito, para exercer direitos que possa estar a ser malferidos. Mas também pode ser servir para exigir condutas públicas ou privadas, as quais são melhor compreendidas no âmbito do direito ao desenvolvimento.
Isso oferece uma coerência especial ao artigo 3º da Constituição Federal, na medida em que deixa claro que a interpretação não pode ter por único parâmetro as estruturas burocráticas e restritivas, o contínuo ativismo ou a condução sem planos e excepcionalizada. Antes, mostra que o critério para selecionar a conduta adequada é a verificação de qual direção promove maior acessibilidade do indivíduo e da coletividade a sua potencialidade.
A reunião em sociedade não é aleatória. Há objetivos a serem alcançados. E são esses objetivos que validam toda a atividade estatal. Toda norma é destituída e sentido e, portanto, inconstitucional, se não buscar "construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais ou promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." Pode-se observar que todos os itens dizem respeito à eliminação de obstáculos à liberdade de ser ou a criar condições para seu exercício: solidariedade, liberdade, desenvolvimento, inclusão social, bem-estar e eliminação das discriminações. Isso não se consegue sem a adoção de ferramentas criteriosas e mecanismos de avaliação de todos os aspectos das políticas públicas a serem pensadas e implementadas, de forma a que promovam melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Nesse plano, vale a pena listar os nove domínios utilizados pelo índice de Felicidade Interna Bruta do Butão, os quais são ensejo a 151 variáveis consistentes e objetivas para avaliar a viabilidade de uma política pública: qualidade de vida, educação, saúde, meio ambiente, vida em comunidade, uso do tempo, bem-estar psicológico, boa governança e promoção cultural.
É indispensável que haja um planejamento que atente para todos esses aspectos de maneira harmonizada e pensada. Sobretudo, na impossibilidade financeira de atender de modo pleno a todos. E isso exige ferramentas e protocolos de análise adequados. É uma violação do direito à Felicidade abandonar um desses domínios sem planejamento e integração com os demais.

FELICIDADE E ESPERANÇA

A Felicidade deriva da Esperança, enquanto virtude. É a liberdade de ser, de sonhar com a própria existência. Daí a expressão “direito à busca da felicidade”.

O direito a sonhar é a felicidade. O sonho não pode ser retirado. O direito à felicidade seria o próprio “direito fundamental à esperança” (Papa Francisco).

Há o direito a poder pensar num futuro. E não apenas a saber que há um futuro, mas que ele seja com melhor qualidade de vida do que as experiências que vivencio, seja fruto do momentos atuais ou passados. É um direito a desenvolver integralmente a liberdade de conformação do próprio destino.
(https://progressionem.blogspot.com/2020/04/sim-e-grave-o-direito-fundamental.html).




Post Scriptum

Declaração Universal dos Direitos Humanos
•Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
...
•Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
•Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Art. XXIX
•3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.


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