O direito das respostas intensas
Francisco de Goya e Lucientes, Saturno, Museo Del Prado |
Por
Fabiano Mendonça
Professor Titular de Direito Constitucional da UFRN
Procurador Federal
A ordem jurídica incorpora sentimentos na medida em que as
normas positivadas trazem para a mente dos cidadãos e para o debate público o
complexo de argumentos que as geraram. A ordem positivada é um suporte para a
transmissão de mensagens. E a comunicação apenas existe quando originada de um
pólo com destino a outro pólo receptor. E, indiscutivelmente, esses pólos interagentes são, cada um, um conjunto de históricos de socialização, traumas, emoções e desejos
diversos que a pessoa transporta pelo mundo.
Uma coisa é não poder emprestar um valor jurídico imediato a
essas expressões de humanidade. Isso equivaleria a, de acordo com a reação
intelectual ou afetiva de um agente jurídico perante uma norma que lhe chega ao conhecimento,
entender que sua resposta ao meio teria efeito cogente sobre a conduta de outrem. Outra
coisa bem diferente seria negar a existência dessas emoções ou não dar-lhe importância.
É por isso que já tratamos de dois grupos de emoções: o medo
(e a confiança) e a vergonha (e a compaixão). A esperança será melhor abordada
ao final, por tratar da harmonização de todos.
Neste momento, a atenção recai sobre um outro complexo de
emoções: a raiva. O Direito tende a reagir agressivamente perante determinados
comportamentos que podem “tirar-lhe o chão”. A subversão da regra de conduta
idealizada não é tolerada pelas normas da raiva.
O reverso da moeda está no direito à pacificação. Eis o
paradoxo: o objetivo da norma de raiva é produzir a paz que julga alcançar com
a mansidão. É por desejo de paz que ela busca a raiva como razão de ser.
Se o encarceramento tem uma faceta que advém do direito ao
medo (que é o fato de ser um mecanismo de proteção), por outro lado, tem culturalmente a
justificativa da raiva (repreensão e vingança contra o infrator da ordem). É o
primeiro exemplo.
As medidas de força, sobretudo as de resposta imediata,
entalham a raiva na ordem jurídica.
Uma medida provisória é um resposta imediata a algo
relevantemente urgente. Uma prisão em flagrante, idem.
Temos o direito à raiva de agressões patrimoniais. O Código
Civil prevê o desforço necessário para reprimir turbação ou esbulho da posse
(artigo 1.210, § 1º), para cortar raízes e ramos de árvores limítrofes e
apropriar-se de frutos que não deveriam ter caído em propriedade alheia (artigos
1.283 e 1.284). E o Código Penal traz as excludentes penais no artigo 23. Essas são
situações em que a ordem jurídica autoriza a raiva nas interações sociais,
ainda que esses dispositivos também possam transportar eventualmente outras
emoções.
A Constituição resguarda a raiva institucional ao possuir um
título dedicado à “defesa do Estado e das instituições democráticas”. Essa é
sua resposta mais forte e ali estão contemplados o Estado de Defesa e o Estado
de Sítio (artigo 136 e seguintes). As forças armadas também, de modo
hierárquica e disciplinadamente organizado, são erigidas em defensoras da
pátria, da democracia, da lei e da ordem (artigo 142, caput).
Ela traz também uma agressividade na relação
Poder Público-particulares ao permitir a ingerência ativa do Estado no
patrimônio destes: empréstimo compulsório (artigo 148); imposto sobre grandes
fortunas (artigo 153, VII); o direito de uso de propriedade particular (artigo
5º, XXV).
Todavia, a Constituição de 1988 não trouxe o direito de
resistência ou a desobediência civil. Mas trouxe a proteção ao direito a buscar
o Judiciário (artigo 5º, XXXV), o direito do contribuinte a fiscalizar as
contas municipais (artigo 31, § 3º) e o direito a “denunciar irregularidades ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União” (artigo 74, § 2º).
A declaração de guerra se constitui em um tema próprio a
esta emoção (artigos 49, II, e 84, XIX). E, neste momento, vê-se a sua
articulação oposta (“si vis pacem, para bellum”): a preambular “solução
pacífica das controvérsias” na ordem interna e internacional (também albergada
no artigo 4º, VII).
Se é compreensível a situação excepcional de uso da força
para evitar uma desagregação social maior, não é menos perceptível que a sua
exacerbação conduz a regimes de força, quiçá totalitários. Não se pode acochambrar
na democracia uma pena como a de Tiradentes: decapitação, esquartejamento,
exemplarização da punição, confisco, infâmia familiar e terreno salgado. Por
isso, o confisco é proibido (artigo 150, IV), dando ensejos a imaginar por
quais fronteiras anda a tributação.
A raiva pode mover o Estado a ações necessárias com o fito
de evitar a estagnação em situações graves, mas não pode chegar ao extremo de fraudar
a própria ordem democrática ou gerar atuações inconsequentes. Se a pacificação
está ínsita a ela, esse sentido tem que ser aferido na conduta estatal.
Dessa maneira, com o que foi exposta até agora, está posto um quadro amplo que reclama
harmonização. O complexo de emoções habita no ser humano, mas este tem o
direito a ser quem é no mundo. Portanto, quando se confronta com o registro
normativo de emoções que não experimenta ou domina, estabelece-se aí uma tensão
que deve ter um caminho de uniformização para uma adequada atividade hermenêutica.
Não pode ser promovido o combate às outras emoções, mas a integração
destas em um conjunto que se harmomize. E esse então será o modelo da sociedade que se submete a uma ordem jurídica: excludente ou inclusiva. É o tema que deve ser enfrentado
agora.
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